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19.10.2021 | Cerimónia de Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes | Panteão Nacional de Santa Engrácia, Lisboa

Em julho de 2020 a Assembleia da República deliberou conceder Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes, prestando, desta forma, a derradeira homenagem a este Ilustre Português, perpetuando a sua memória – conforme se refere na Resolução n.º 47/2020 - «(…) enquanto homem que desafiou a ideologia fascista, evocando o seu exemplo na defesa dos valores da liberdade e dignidade da pessoa humana». 

Uma iniciativa que mereceu amplo consenso parlamentar, que teve origem no Projeto de Resolução apresentado pela Deputada Joacine Katar Moreira, e no programa de panteonização confiado, com sucesso, ao Grupo de Trabalho Concessão de Honras de Panteão Nacional a Aristides de Sousa Mendes, composto por dez Deputados – incluindo Representantes de todos os Grupos Parlamentares, um Deputado Único e as duas Deputadas Não Inscritas –, bem como por dois Representantes da Família de Aristides de Sousa Mendes. 

A todos os Membros deste Grupo de Trabalho endereço, na pessoa do seu Coordenador, o Deputado Pedro Delgado Alves, um agradecimento pelo trabalho realizado, o qual se pautou sempre, também ele, por um grande consenso, o que é digno de registo. 

Através deste ato, reconhece-se a Aristides de Sousa Mendes um lugar neste Panteão, areópago de alguns dos mais insignes heróis nacionais, como Almeida Garrett, Sophia de Mello Breyner Andresen ou Humberto Delgado. 

Aristides de Sousa Mendes nasceu a 19 de julho de 1885, em Cabanas de Viriato, no concelho de Carregal do Sal, distrito de Viseu. 

Filho de José de Sousa Mendes, juiz de direito, e de Maria Angelina Ribeiro de Abranches, que tiveram mais dois filhos, um deles gémeo de Aristides, com quem manteve, aliás, ao longo da vida uma relação de grande proximidade. 

Aristides de Sousa Mendes estudou Direito na Universidade de Coimbra, tendo-se destacado como um dos melhores alunos do seu curso, que terminou em 1907. Três anos depois, ainda durante a monarquia, ingressou na carreira diplomática. 

Casou-se com Maria Angelina Coelho de Sousa Mendes, com quem teve 14 filhos. 

Como diplomata, Aristides de Sousa Mendes exerceu funções em Zanzibar e Curitiba (como Cônsul de 2.ª Classe), ou no Maranhão e Antuérpia (como Cônsul de 1.ª Classe), entre outros postos. 

Em 1939, pouco antes do início da II Grande Guerra, foi nomeado para exercer as funções de Cônsul-Geral em Bordéus. 

Nesta cidade francesa, foi confrontado com um insanável conflito entre a sua consciência e a obediência às ordens do Governo que jurou servir.

Com o dealbar da Guerra e a consequente invasão dos Países Baixos e de França pelas tropas alemãs, afluíram a Bordéus milhares de refugiados com a esperança de conseguir um visto que lhes permitisse fugir da Guerra e do Holocausto nazi.

No entanto, através da Circular 14, de 11 de novembro de 1939, o Governo de Salazar proibira todas as Embaixadas e Consulados Portugueses de conceder, salvo autorização prévia de Lisboa, vistos a um conjunto específico de cidadãos, onde se incluíam judeus, exilados políticos e cidadãos oriundos de países do Leste Europeu.

Aristides de Sousa Mendes enviou inúmeros pedidos de autorização ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, que demorava a responder, ou nem sequer o fazia, o que comprometia as possibilidades de salvar muitos dos refugiados.

Desafiar as ordens de Lisboa comportava riscos evidentes para o Cônsul-Geral em Bordéus. Para a sua própria vida, para a sua liberdade, para o seu sustento e o da sua Família.

Aristides de Sousa Mendes optou, no entanto, por obedecer à sua consciência e, independentemente da religião, raça ou convicções políticas, emitiu vistos a todos os que o solicitaram, e que procuravam noutras geografias (mas, sobretudo, no continente americano) apenas um refúgio que salvaguardasse a sua vida, a sua liberdade e a sua dignidade.

O diplomata português chegou mesmo a acolher na sua residência de Bordéus um significativo número de refugiados, a quem deu abrigo e alimento.

Aristides de Sousa Mendes viria a explicar mais tarde, de forma exemplar, o cenário com que se deparou e os motivos que o levaram a agir: 

«(…) Era realmente meu objetivo salvar toda aquela gente, cuja aflição era indescritível: uns tinham perdido os seus cônjuges, outros não tinham notícias dos filhos extraviados, alguns tinham visto sucumbir pessoas queridas sob os bombardeamentos alemães que todos os dias se renovavam e não poupavam os fugitivos apavorados. Quantos tiveram que inumá-las antes de prosseguirem na louca correria da fuga! 

(…) Muitos deles eram judeus, que, já perseguidos antes, procuravam angustiosamente escapar ao horror de novas perseguições (…). 

Quantos suicídios e outros atos de desespero se produziram, quantos atos de loucura de que eu próprio fui testemunha! Tudo isto não podia deixar de me impressionar vivamente, a mim que sou chefe de numerosa família e compreendo melhor do que ninguém o que significa a falta de proteção à família. Daí a minha atitude, inspirada única e exclusivamente nos sentimentos de altruísmo e de generosidade de que os portugueses, através dos seus oito séculos de história, souberam tantas vezes dar provas eloquentes e que tanto ilustram os nossos feitos heroicos». 

Graças a este gesto heroico, estima-se que, em junho de 1940, mais de 30.000 vidas tenham sido salvas do horror nazi. 

Para melhor se ter a noção da dimensão do gesto, lembro aqui as palavras de Yehuda Bauer, reconhecido historiador deste período, que o considerou como «(…) provavelmente, a maior ação de resgate por um único indivíduo durante o Holocausto».

Todos concordarão que o exemplo de generosidade e de coragem de Aristides de Sousa Mendes engrandece Portugal e prestigia o Povo Português.

Tenho a certeza de que a maioria das pessoas gostará de pensar que, se alguma vez estivesse perante um dilema equivalente, escolheria não olhar para o lado e tomar a decisão ética, enfrentando as consequências.

Felizmente, poucos de nós são confrontados na vida real com tal dilema.

Não sou nenhum pessimista antropológico, antes pelo contrário, mas tenho idade suficiente, bem como um razoável conhecimento da História, para saber que são muito raras as pessoas que, na hora decisiva, face a situações concretas, arriscam mesmo comprometer a sua segurança, a sua liberdade, ou a da sua família, com o único propósito de ajudar os outros.

Aristides de Sousa Mendes foi uma dessas pessoas!

E, quando algo de extraordinário como isso acontece, somos tocados pela grandeza.

Numa canção sobre a resistência na 2.ª Grande Guerra, o poeta e cantor Leonard Cohen refere a história de uma mulher idosa que acolhe em sua casa fugitivos antifascistas, escondendo-os no sótão, e que, perante a chegada dos soldados alemães, nada diz, acabando por morrer às suas mãos, sem um suspiro de denúncia.

Sempre me emocionei com estes versos, como sempre me emocionei com a enorme coragem de Aristides de Sousa Mendes.

Como é sabido, este seu gesto heroico, contrariando ordens expressas do Governo de Salazar, teve consequências para a sua vida pessoal e profissional, bem como para a sua Família.

Profissionalmente, foi destituído do cargo, alvo de um processo disciplinar parcial e iníquo, que todos deverão conhecer e que, na prática, ditou a sua expulsão da carreira diplomática, privando-o da fonte do seu sustento, tendo Aristides de Sousa Mendes sido igualmente proibido de exercer advocacia.

Os seus filhos viram-se obrigados a emigrar, depois de terem sido impedidos de ingressar no ensino superior e de exercer quaisquer cargos públicos.

Votado ao esquecimento, na miséria e ignorado até pelos seus amigos, Aristides de Sousa Mendes viria a falecer em 1954, aos 69 anos, já bastante debilitado e doente, no Hospital da Ordem Terceira de S. Francisco, em Lisboa.

Estas circunstâncias remeteram, durante anos, o seu exemplo a um injusto e cruel esquecimento.

A grandeza do gesto de Aristides de Sousa Mendes só viria a ser reconhecida por Portugal após o 25 de Abril de 1974, quando a sua história foi dada a conhecer, nomeadamente através da imprensa.

Não obstante algumas diligências do I Governo Constitucional, com vista à reintegração do diplomata, reconhecendo a ilegalidade da pena que lhe foi imposta, seria apenas nos anos 80 que, por impulso de Deputados como Jaime Gama e do recentemente desaparecido Jorge Sampaio, a Assembleia da República repararia oficialmente esta injustiça.

Foi através da Lei n.º 51/88, de 26 de abril, que se decretou, por unanimidade, a reintegração, a título póstumo, na carreira diplomática do ex-Cônsul-Geral de Portugal em Bordéus, reconhecendo-se também o direito a indemnização reparadora aos herdeiros diretos.

Depois disso, foi merecendo crescente atenção a história do seu Ato de Consciência. Do jornalismo à academia, têm sido diversas as instâncias a contribuir para resgatar da memória e dar a conhecer a todos o seu exemplo.

Oficialmente, têm sido muitas as homenagens a Aristides de Sousa Mendes, destacando-se a Grã-Cruz da Ordem de Cristo ou a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, atribuídas, respetivamente, em 1995 e 2017, pelos Presidentes da República Mário Soares e Marcelo Rebelo de Sousa.

No estrangeiro, esse reconhecimento chegou mais cedo, muito em especial em 1966, quando a Aristides de Sousa Mendes foi atribuído o título de "Justo entre as Nações", título honorífico atribuído pelo Estado de Israel às pessoas não judias que usaram "a sua vida, liberdade, ou estatuto" para salvar uma ou mais vidas judias durante o Holocausto.

Mesmo hoje, o exemplo de Aristides de Sousa Mendes continua a ecoar e a ser evocado por esse mundo fora.

Como aconteceu ainda em abril deste ano, quando o Senado dos Estados Unidos da América aprovou, por unanimidade, uma Resolução que homenageia a sua memória, lembrando o trabalho humanitário de Aristides de Sousa Mendes ao agir "com coragem e risco pessoal", salvando muitos milhares de vidas inocentes.

Hoje, o seu legado de altruísmo, de empatia, de tolerância e de defesa da liberdade deve, mais do que nunca, ser lembrado, realçando-se, neste âmbito, a importância da criação, em 2000 e pela sua Família – com o apoio de várias entidades, públicas e privadas –, da Fundação Aristides de Sousa Mendes, com vista a melhor divulgar o seu Ato de Consciência.

Oito décadas passadas sobre os acontecimentos de Bordéus, é, porém, com sobressalto que, pela Europa e pelo mundo fora, se verifica que o registo histórico do sucedido pode não ter ficado suficientemente enraizado na memória coletiva das democracias que desde então foram emergindo.

Lembro, a este propósito, o aumento evidente de fenómenos de antissemitismo, de ódio racial, de homofobia, de recusa do outro, por ser estrangeiro ou diferente.

Assim como o recrudescimento de discursos negacionistas do Holocausto e das vidas das suas vítimas, cujo testemunho na primeira pessoa vai, por força da lei do tempo, começando a desaparecer.

Aristides de Sousa Mendes foi figura maior do século XX português.

Que o exemplo da sua conduta, a que hoje aqui prestamos homenagem, sirva de farol em tempos de novas dificuldades e desafios para a memória coletiva, demonstrando o valor da resistência ao injusto e desumano.

Que a sua entrada no Panteão Nacional contribua para perpetuar a sua memória.


Eduardo Ferro Rodrigues

Presidente da Assembleia da República