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Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na sessão comemorativa do Dia do Instituto Politécnico de Coimbra

O ensino superior politécnico

7 de Julho 2023

 

1.

Proponho-me fazer uma reflexão em voz alta sobre o futuro do ensino superior politécnico[1].

É uma reflexão interessada. Tenho por evidente que o ensino superior é fator imprescindível do nosso desenvolvimento. É um recurso essencial para a formação das pessoas, para a qualidade das instituições, para o exercício da cidadania, para o crescimento e a modernização da economia e para a qualificação dos territórios.

Parece-me também cristalina uma dupla constatação.

Por um lado, temos feito um caminho assinalável na massificação da frequência do ensino superior, com resultados na diplomação. Bastará referir os dois números seguintes, que retirei da base de dados Pordata: em 2001, a taxa de diplomação com ensino superior no grupo etário dos 30 aos 34 anos era de 11,6%; 20 anos depois, em 2021, essa taxa tinha subido aos 43,7%, tendo já ultrapassado os 50% entre as mulheres.

Mas, por outro lado, precisamos de continuar este esforço de generalização, visto que o efeito de stock (isto, o peso de décadas passadas de incúria) ainda é bastante pesado. Também aí a evolução tem sido notável: em 2001, apenas 6,8% da população com 15 ou mais anos tinha frequentado uma escola superior; em 2021, eram 24,1%. É mister, porém, persistir e consolidar.

Compreende-se, assim, que, quando me convidam a falar sobre o ensino superior em Portugal, o faça a partir daquela convicção firme sobre o seu papel-chave no desenvolvimento e desta dupla constatação sobre o ponto em que estamos.

Ora, o subsistema politécnico é hoje uma parte fundamental do sistema de ensino superior. Eis um facto, uma realidade.

Em 2022 (e recorro agora aos dados publicitados pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência), dos 433 milhares de estudantes matriculados no ensino superior em Portugal, 158 milhares eram-no no politécnico, representando cerca de 37% do total (sendo 132 milhares no politécnico público). Quanto aos que concluíram estudos em 2021, 27 mil fizeram-no no politécnico público, valendo cerca de 29% do total de 93 mil diplomados.

A rede de institutos e escolas politécnicas é uma das responsáveis pela capilaridade territorial do ensino superior, presente em todos os distritos do continente e em ambas as regiões autónomas. No Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos (que congrega os estabelecimentos públicos), participam 15 institutos, cinco escolas não integradas e sete escolas politécnicas de universidades públicas.

E ainda mais importante me parece ser a amplitude do leque de formações oferecidas, cobrindo agricultura e pecuária; engenharia e tecnologias; contabilidade, gestão e administração; serviços jurídicos, como solicitadoria; educação; enfermagem e tecnologias de saúde; comunicação social; comunicação institucional, marketing e publicidade, educação social, mediação e animação; hotelaria e turismo; desporto e lazer; design e moda; música, dança, cinema e teatro; artes aplicadas, conservação e restauro.

O Instituto Politécnico de Coimbra, cujo amável convite me permite realizar esta reflexão, é, ele próprio, um bom exemplo da importância do subsistema, com as suas seis escolas, 11 mil estudantes e mil e cem trabalhadores docentes e não-docentes.

 

2.

Atentos estes factos e números, como podemos então pensar o desenvolvimento do ensino superior politécnico?

O primeiro passo deve consistir em afastar abordagens demasiado esquemáticas ou mecanicistas; e renunciar a qualquer ilusão de engenharia social, por assim dizer, absoluta. E quero com isto dizer duas coisas.

Uma é que os processos sociais são dinâmicos. Felizmente. Não são comandados exclusiva ou predominantemente por lógicas de desenho institucional. As quais são certamente necessárias, assumam a forma de leis ou de modelações administrativas ou organizacionais; mas não bastam por si sós para pilotar uma dinâmica que depende tanto ou mais de fatores como a procura das famílias e dos estudantes, a evolução da oferta, os resultados obtidos, as oportunidades que em cada momento e lugar se perfilam. É essencial compreender que as decisões políticas, académicas ou técnicas devem servir de incentivos ou orientações, deixando espaço de respiração à realidade social - que nunca é linear, nunca é inteiramente previsível e se nos apresenta sempre com vários graus de incerteza. O que o ensino politécnico será no futuro não é determinável hoje, mesmo que de forma voluntarista, pelas nossas opções. Nem o ensino politécnico, nem o universitário.

A outra coisa que quero acentuar com a recusa de qualquer esquematismo é a vantagem de uma visão global. Politécnico e universitário são distinguíveis, se olharmos para o conjunto das suas características respetivas, não para cada uma delas sem relação com as outras. Não são mundos estanques que não se pudessem influenciar mutuamente, ou interpenetrar; pelo contrário, apresentam vários pontos de tangência e áreas de intersecção. E a sua diferenciação não se perfila como uma sequência de oposições dicotómicas, segundo uma lógica de polos exclusivos que não admitissem gradações.

Ao contrário do que se diz demasiadas vezes, o que separa o politécnico e o universitário não é que o primeiro se cinja à "aplicação" onde o segundo se devota à "ciência fundamental"; que aquele se limite à "prática" quando este acede aos arcanos da "teoria"; que um esteja preso de uma localização específica onde o outro, fazendo jus ao nome, trata do "universal". As distinções são mais subtis e bem mais complexas. Estruturam-se numa lógica de contínuo e não de estrita bipolaridade; e operam entre dois feixes de atributos, não necessariamente atributo a atributo.

Nestes termos, a minha sugestão é que projetemos o futuro do ensino politécnico a partir de duas ênfases cumulativas: sublinhemos o facto de ser ensino superior, sem qualquer tibieza nem concessão a soluções de facilidade; e valorizemos, em seguida, o contributo próprio ao conjunto do sistema de ciência, inovação e ensino superior.

 

3.

O ensino superior politécnico é ensino superior. O que é que isto significa?

Que se trata de uma formação pós-secundária, quer dizer, mesmo nos seus ciclos iniciais, relativamente avançada. E, portanto, sempre com uma forte componente teórica, isto é, de problematização, análise, experimentação, reflexão.

Que, como é próprio de qualquer escola superior, cada instituto politécnico articula processos de produção, de transmissão e de aplicação de conhecimento. Tem, pois, de incorporar capacidades de investigação, que produzam saber; capacidades de ensino, que desenvolvam nos estudantes as competências indispensáveis para receber, interpretar e estender o saber; e capacidades de disseminação de tais saberes e competências pela estrutura social e económica a que se refira.

E que constitui, não só um recurso, como também um ator relevante no seu território, uma parte interessada no quadro institucional, no tecido socioeconómico e na comunidade cívica em que se insere.

O subsistema politécnico acolhe, portanto, uma formação avançada, que mobiliza sempre a ciência, as humanidades ou as artes, e está em relação de parceria ou intervenção com o meio ambiente. Tal como o ensino universitário, tal como qualquer formação de natureza pós-secundária. E, sim, nos dias de hoje nada disto se faz senão também em contexto de internacionalização. Os institutos politécnicos têm, aliás, desempenhado um papel muito importante na captação de estudantes internacionais, designadamente de países de língua portuguesa; e participam em redes europeias e internacionais de ensino e investigação que são úteis para todos.

 

4.

O outro elemento que devemos valorizar é o papel do ensino politécnico como parte do sistema nacional de ciência, inovação e ensino superior. Não parte menor ou secundária, face a outra (concretamente, face às universidades e grandes laboratórios). Apenas parte, cujo protagonismo depende da performatividade que apresente e do valor que acrescente. Ou seja: que nem é negado nem garantido prévia e administrativamente, antes está sempre em aberto. 

Pessoalmente, vejo a identidade e o contributo potencial do politécnico em três planos complementares.

Primeiro, no que toca à construção, no nosso sistema educativo, de uma fileira coerente de formações de índole ou pendor tecnológico. Este sistema inclui uma educação pré-escolar, a partir dos três anos de idade, e um tronco básico comum nos nove anos de escolaridade inicial. Depois, quer nos três anos restantes de escolaridade obrigatória (agora nos 12 anos de escolaridade, ou até aos 18 anos de idade), é mesmo o objetivo da universalização de frequência e sucesso que pede a diversificação de formações. As quais tenderão a estruturar-se ao longo do ensino secundário e superior (graduado e pós-graduado) e, ainda, ao longo da vida ativa, em fileiras que sejam verticalmente coerentes. Não estanques, antes admitindo e incentivando canais e tempos de comunicação entre si, o que nos separa com clareza, quer da antiga divisão discriminatória entre ensino técnico e liceal, do Estado Novo, quer de sistemas duais de diferenciação precoce, como acontece na Alemanha ou em parte da Suíça; de modo que os estudantes possam realizar também, se pretenderem, percursos escolares combinados. Mas, de qualquer modo, fileiras, com os respetivos segmentos logicamente articulados.

Uma delas é precisamente a que permite dar coerência aos cursos artísticos, profissionais, tecnológicos, de aprendizagem, de nível secundário e, a jusante, formações mais curtas ou longas de nível superior. É uma fileira de formação mais tecnológica e profissionalizante, que inclui quer segmentos de nível secundário, quer de nível pós-secundário, graduação e pós-graduação. Retenhamos, portanto, o mais importante: a diferença do politécnico face ao universitário não está em ser a escolaridade mais curta ou menos exigente, está sim em ser mais organizada em torno dos saberes aplicados.

O segundo plano respeita justamente à produção e disseminação de tais saberes aplicados. Na verdade, encontra-se aqui outro traço tendencialmente identificador do subsistema politécnico. Mais uma vez: não é ser a sua atividade reduzida ao ensino e, nele, ao chamado ensino prático; ela envolve, já vimos, teoria, ciência, pesquisa. Mas é, outrossim, privilegiar a investigação e desenvolvimento, ou seja, os cruzamentos entre investigação fundamental e tecnologia; orientar-se estrategicamente para a formação de quadros profissionais (técnicos e superiores); inscrever-se claramente no sistema de inovação, isto é, no que aproxima as ideias e os conhecimentos, de um lado, e, do outro, a produção e os mercados.

Neste ponto, é muito útil recordar o que é hoje o leque de formações politécnicas, para sublinhar que as expressões convencionais aqui usadas – investigação e desenvolvimento, ciência e tecnologia, inovação – não remetem apenas para os setores primário e secundário, para o comércio e para os serviços diretamente ligados à atividade produtiva. Incluem os serviços prestados às pessoas e comunidades, as artes e o património, o desenho urbano, a educação, a inovação social.   

O terceiro plano, enfim, concerne a ancoragem territorial. Todas as instituições científicas e educativas, quaisquer que sejam, possuem tal ancoragem: as coisas não existem no vazio, a dimensão espacial é sempre relevante. Também não é aqui que reside a diferença específica de um e outro subsistema de ensino superior. Todavia, o facto de a missão do politécnico compreender uma orientação estratégica para o desenvolvimento (institucional, económico, social, ambiental…) tem por consequência uma maior proximidade ao entorno – um elo mais forte de ligação ao território. Cuja escala é variável, não podendo ser reduzida ao município ou ao "distrito" económico (marshalliano). Só no concreto se podem circunscrever a bacia geográfica e o ambiente socioeconómico que servem de referência; e essa circunscrição, longe de ser fixa ou rígida, é, ela própria, alterável.

Não obstante, pede-se aos institutos politécnicos – aos seus dirigentes, professores, investigadores, estudantes e parceiros – que sejam especialmente atentos às realidades regionais: à estrutura económica, às instituições e autoridades públicas, aos atores sociais, aos desafios e oportunidades que têm uma direta inscrição no território. Que seja, cada um, parceiro de desenvolvimento local e regional; e que sejam verbos como fazer, produzir, cuidar, servir, criar, qualificar, inovar, transformar, os que melhor designem a respetiva ação.

 

5.

Assim entendido, o ensino politécnico traz plasticidade, agilidade, diversidade, proximidade, iniciativa, utilidade. Pode ser especialmente capaz de ler rapidamente a evolução de um dado território, de identificar necessidades de formação, de adaptar ofertas de ensino, de disseminar qualificação e empreendedorismo pelo tecido social, de trabalhar em rede com outros atores de desenvolvimento. Acrescentando valor, não apenas ao sistema de ensino superior, como também ao sistema de inovação, ao campo cultural e artístico, à rede nacional de cuidados, à administração pública, ao setor privado e à economia social.

É desta perspetiva positiva, orientada para o futuro e centrada no ciclo médio, que mais beneficiará, a meu ver, a reflexão coletiva sobre o futuro do ensino politécnico e o seu lugar no sistema de ensino superior. E também um relacionamento adulto, respeitoso e produtivo com as universidades, que ignore pulsões intempestivas de imitação, competição e emulação (que, aliás, quando existem, ocorrem nos dois sentidos, não só de politécnicos face a universidades, mas ainda em direção inversa), para se concentrar nas possibilidades de colaboração e sinergia. Somos um país demasiado pequeno, e com forte insuficiência de massa crítica em tantas áreas, para nos darmos ao luxo de termos mais de 30 instituições superiores de costas voltadas umas para as outras (e falo apenas do setor público). Os ganhos de escala parecem-me indispensáveis e a junção de esforços, não apenas possível como imperiosa.

O ponto está em que ultrapassemos as visões paroquiais e preconceituosas, venham elas de onde vierem. Não: a natureza do ensino politécnico não está em que seja mais fácil ou menos exigente (e nem sequer tenho aqui tempo para fazer a desconstrução dessa ideia bacoca da exigência colada ao antigo academismo); não está em que seja prático e local; não está em que se encontre ao serviço da economia-tal-qual-ela-é. Caso contrário, pura e simplesmente não precisaríamos dele, como ensino superior e politécnico. Ele é hoje parte inquestionável do sistema de ensino superior e, crescentemente, do sistema de ciência e tecnologia e do sistema de inovação. Ele refere-se à economia-que-queremos, e requer crucialmente da disseminação pelo território, pelas empresas, pelo capital humano de saberes e competências. Ele valoriza dimensões essenciais desses saberes e competências, como as artes, a educação, o cuidado, a tecnologia. Ele combina investigação e desenvolvimento em áreas em que a dotação nacional em investigação e desenvolvimento é ainda muito reduzida.

Não há, pois, que ter receio do futuro, assim saibamos nós moldá-lo.    




[1] - Texto escrito a partir da intervenção na cerimónia do Dia do Instituto Politécnico de Coimbra, a 7 de julho de 2023.