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É preciso alterar os tratados europeus?


Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva1,  na conferência interparlamentar “Conclusões da Conferência sobre o Futuro da Europa que implicam alterações aos Tratados”, promovida pela Comissão de Assuntos Europeus da Assembleia da República, em colaboração com o Parlamento Europeu

2 de novembro de 2022


1.

Felicito a Comissão de Assuntos Europeus por esta iniciativa, que me parece muito oportuna e pertinente[1]. Esboçarei um quadro de referência geral para o debate que aqui vão ter. Não o farei, naturalmente, a partir de um ponto de vista neutro, que não tenho – as minhas posições europeístas são bem conhecidas. Mas procurarei fazê-lo da forma mais distanciada possível, isto é, colocando perguntas mais do que tentando dar respostas.

O meu ponto de partida é comum a muitos dos presentes e poder-se-ia caracterizar como de máxima prudência no que diz respeito à abertura de debates sobre a arquitetura institucional europeia. Quatro razões explicam tal prudência.

A arquitetura institucional da União Europeia é uma das construções políticas e jurídicas mais complexas que a humanidade alguma vez conseguiu imaginar e implementar. Vive de equilíbrios dinâmicos, mas também delicados, em duas ordens: primeiro, entre os grandes órgãos de governação europeia, a saber, o Parlamento Europeu, o Conselho Europeu, o Conselho e a Comissão Europeia; segundo, entre os órgãos de governação europeia e os órgãos de governação nacional.

Como todos sabemos, a União Europeia é um género de um só caso, no sentido em que nem é um Estado nem uma federação ou confederação de Estados, não sendo, porém, apenas uma organização internacional. E a natureza única da União Europeia tem vivido, ao longo das décadas, da construção de um edifício institucional cuja arquitetura é bastante plástica e se alimenta de relações densas e delicadas entre diferentes forças, instituições e tendências. Essa é uma primeira razão que nos leva a ser bastante prudentes: saber em que condições se poderá ou não mexer neste equilíbrio a que chegámos.

A segunda prende-se com a dificuldade de abrir um processo que sabemos como começa, mas não como acabará. A boa doutrina estratégica aconselha a que iniciemos processos tendo uma ideia clara sobre o estádio final a que, com eles, queremos chegar. Não é o caso, e uma coisa sabemos: processos deste tipo, que têm a ver com o complexo institucional do nosso edifício, são muito absorventes e divisivos.

A terceira razão é que a muitos de nós parece que nem todas as potencialidades dos tratados em vigor, aqueles que foram alterados pelo Tratado de Lisboa — o Tratado da União Europeia e o Tratado de Funcionamento da União Europeia —, estão plenamente aproveitadas. Por exemplo, temos recorrido menos do que poderíamos às chamadas cláusulas passerelle, as quais permitem, em certas condições, passar de deliberações por unanimidade a deliberações por maioria qualificada. Isto, pela negativa. Mas também, pela positiva, verificamos que não foram os tratados que nos impediram de construir o programa Next Generation (Próxima Geração, de que saíram os planos nacionais de recuperação e resiliência, PRR), encontrando uma resposta qualitativamente nova e, em muitos aspetos, revolucionária às necessidades sentidas pelos Estados-membros para acudir aos efeitos económicos e sociais da pandemia da Covid-19.

O quarto motivo de prudência é que o voluntarismo — palavra que uso em sentido neutro e não negativo — de várias das propostas que estão em cima da mesa, designadamente aquelas alimentadas no Parlamento Europeu, sendo, e bem, de índole federalista, poderiam criar um efeito boomerang, isto é, virar-se contra si próprias, num período em que a construção europeia está submetida a tantas dúvidas e envolta em tanto ceticismo nas opiniões públicas e parlamentos nacionais.

Refiro-me a propostas como o direito de iniciativa legislativa do Parlamento Europeu, o referendo europeu, as listas transnacionais, o aumento dos poderes de Estrasburgo no processo orçamental e, maxime, a eleição direta do ou da Presidente da Comissão Europeia por sufrágio universal e direto dos cidadãos europeus. Não me pronunciando sobre o seu conteúdo e finalidade, temo que a linha voluntarista que as anima num sentido muito federalista possa ter como efeito indesejado e perverso reforçar o euroceticismo.

Portanto, o ponto de partida de muitos em relação a discussões sobre a alteração dos tratados ou a reformatação da arquitetura institucional, costumava ser de grande prudência e, no que me diz respeito, ainda o é.

 

2.

Dito isto, há vários factos que ocorreram nos últimos anos (e, em especial, nos últimos meses) que levam a que talvez seja inevitável uma revisão dos tratados. Que factos são esses? Na minha perspetiva, os sete seguintes.

O primeiro é, evidentemente, o facto de termos lançado a Conferência sobre o Futuro da Europa, abrindo um processo bastante participado de consulta e discussão, entre os nossos parlamentos, governos e sociedades civis, sobre o devir da União. Não podemos ignorar a dinâmica desse debate e os seus resultados, as propostas que foram consensualizadas e as ideias que apareceram, muitas delas saudadas e várias, até, apropriadas por órgãos como, consoante o caso, a Comissão e o Parlamento Europeu.

A Conferência sobre o Futuro da Europa há de ter uma sequência, incluindo a avaliação sobre se precisamos ou não de rever os tratados e, se sim, como, quando e em que direção. Portugal tem, aliás, uma responsabilidade acrescida, visto que foi nos primeiros meses de 2021, durante a sua presidência da União Europeia, que se desbloqueou a Conferência sobre o Futuro da Europa, chegando-se enfim a acordo sobre a sua organização e liderança, e foi então que arrancaram os respetivos trabalhos.

O segundo facto é que a pandemia da Covid-19 nos obrigou a refletir seriamente sobre se a atual divisão de competências entre a União Europeia e os Estados-membros, em domínios como a saúde pública, é suficiente para respondermos em conjunto a crises com a dimensão e o tipo de consequências dessa pandemia; mais particularmente, se ainda se justifica a remissão para o nível estritamente nacional do essencial das políticas sociais. Aliás, iniciámos, logo em 2020, um processo de alargamento das competências europeias em matéria de políticas de saúde, quer diretamente, quer indiretamente, isto é, no que toca aos efeitos socioeconómicos de crises sanitárias. É apenas um exemplo, mas expressivo, de ocorrências recentes que nos atingiram a todos e obrigam a repensar a lógica atual de divisão de competências entre Bruxelas e as capitais nacionais.

O terceiro facto é que, de forma verdadeiramente surpreendente, o Estado de direito deixou de ser, há alguns anos, um pressuposto da pertença à União que toda a gente dava por adquirido e ninguém se atrevia a questionar, passando a constituir, o seu cumprimento, um problema e, as medidas a tomar face aos incumpridores, motivo de forte divisão.

Ora, acontece que, em tais lides, nos vamos deparando com os limites dos tratados em vigor. É certo que os artigos 2.º e 7.º do Tratado da União Europeia permitiram-nos encarar de forma qualitativamente nova eventuais problemas de conformação dos Estados-membros com os valores europeus e as regras básicas do Estado de direito. Mas a experiência da sua aplicação tem mostrado as limitações dos procedimentos previstos, designadamente porque os governos demandados têm, na prática, um considerável poder de bloqueamento dos processos que lhes sejam abertos.

Um quarto facto já havia sido posto em relevo no contexto da crise financeira de 2008 e, sobretudo, no contexto da crise das dívidas soberanas de 2010; e, agora, as crises económicas e sociais resultantes da pandemia e da guerra da Rússia contra a Ucrânia, vieram acentuá-lo. Trata-se da dificuldade de gestão das crises e das suas consequências financeiras e orçamentais, por não dispormos de uma capacidade orçamental própria, pelo menos, da zona euro.

A terminologia varia: uns dizem orçamento ou capacidade orçamental; outros almejam um Tesouro europeu; outros preferem falar pragmaticamente de um mecanismo comum e permanente de resposta a crises (de alguma forma institucionalizando o que foi, em 2020-2021, o programa SURE). Mas une-os essa constatação da ausência de instrumentos coletivos para responder a desafios económicos que nos interpelam a todos, não só a um ou alguns Estados-membros, mas ao conjunto da União, ao menos da União Económica e Monetária.

Há um quinto facto que também tem merecido reflexão. Desde 2000, utilizamos, e bem, o método de tomada de decisão e indução política conhecido por coordenação aberta: a responsabilidade reside essencialmente nas mãos dos Estados-membros, mas estes definem objetivos, metas e calendários comuns, submetendo-se a processos de avaliação intermédia sobre o respetivo cumprimento e resultados.

A pergunta que nos colocamos é se basta esse mecanismo de coordenação aberta para garantir a implementação de programas tão ambiciosos, e importantes, como o Pilar Europeu dos Direitos Sociais. E, se não for, que mudanças haveremos de introduzir.

O penúltimo facto da minha lista é a evolução do pensamento sobre a regra da unanimidade. Há muito boas razões para que, em matérias tão cruciais para a soberania nacional como são os impostos, a defesa ou a política externa, o método de decisão envolva a unanimidade, devendo todos os Estados-membros empenhar-se em – partindo muitas vezes de posições bem distantes - construir e validar soluções comuns, no que diz respeito à política externa, à política de segurança e defesa e à equidade fiscal na União Europeia.

A lógica é justamente essa: considerar os interesses próprios de cada um, procurar respeitá-los e, por aproximações sucessivas, com boa vontade e espírito de compromisso, ir consensualizando posições comuns. É, pois, uma lógica positiva, de cooperação. Acontece que, nos últimos anos, alguns governos têm usado as garantias que decorrem da regra da unanimidade de forma profundamente negativa, porque, em vez de negociarem, usam-na como ameaça, para fazer valer o seu interesse individual, ou como chantagem, para obter contrapartidas favoráveis em outras áreas que não aquela sob juízo. E, por conseguinte, o que era um incentivo para o consenso vai-se tornando um mecanismo de veto e bloqueamento. Daí que muitos reflitam sobre se é ou não altura de mudar esta regra de unanimidade; e, se sim, onde e como fazê-lo.

Finalmente, a solidariedade com a Ucrânia e a urgência de concretizá-la em todos os aspetos simbólicos e práticos, aceitando em tempo recorde a sua candidatura à União Europeia e comprometendo-nos com um tratamento tão expedito quanto possível dessa candidatura, revigoraram o processo geral de alargamento. Numa direção (a Ucrânia, a Moldova, a Geórgia, os Balcãs Ocidentais), que, a consumar-se, alterará substancialmente a geografia e a geopolítica da União Europeia e os seus equilíbrios internos.

Não quero discutir aqui se isto faz ou não sentido. Apenas digo que o revigoramento do processo de alargamento exige que a União Europeia reforme os atuais instrumentos, ou se municie de novos, para acolher outros países, tendo em conta as suas tradições históricas e inserções geopolíticas. Quer no que diz respeito aos processos de decisão, quer do ponto de vista das políticas de coesão, quer quanto aos recursos e modos de financiamento de políticas comuns; e isso pode ter de passar pela alteração dos tratados.

 

3.

Retiro desta análise duas conclusões: por um lado, não podemos ignorar os desafios que se colocam à arquitetura institucional da União Europeia, e que os acontecimentos recentes têm acentuado; por outro lado, não devemos ignorar a necessidade de sermos prudentes, intelectualmente sólidos e politicamente realistas, no debate e na escolha das soluções.

Tudo isto pede o empenhamento e a participação das assembleias onde está representada a diversidade das cidadanias e onde reside o âmago do debate ideológico e político: o Parlamento Europeu, os parlamentos nacionais. Não apenas na habitual dialética (que não menosprezo, mas é aqui insuficiente) entre governos e oposições, maiorias e minorias, e na qual o debate europeu tende a ser usado de forma predominantemente instrumental, estando na ordem interna o fito principal; mas através também do diálogo e confronto entre as distintas famílias políticas europeias, os valores que as estruturam e as propostas que elaboram. Ainda por isso, esta conferência, que reúne deputados portugueses e eurodeputados portugueses e estrangeiros, de diferentes correntes e filiações partidárias, dificilmente poderia ser mais oportuna.



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 [1] - Transcrição da intervenção oral, revista pelo autor.