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Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na Palestra “O Português como Língua Global no Século XXI: A Experiência da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”


O português como língua global no século XXI 

5 de maio de 2023

 

1. Demografia e geografia da língua

Agradeço o convite para regressar ao Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos da Universidade de Varsóvia[1]. Já tive o prazer de participar aqui, em 2018, nas comemorações do 40.º aniversário dos estudos portugueses nesta Universidade e é um enorme gosto voltar, quase cinco anos depois.

O tema escolhido, o português como língua global, é de grande atualidade. À primeira vista, parece enunciar uma evidência. Mas vou tentar explicar porque é que coloca muitos desafios a todos os que partilham esta língua.

Sabemos que é a língua oficial, ou uma das línguas oficiais, de nove países: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, S. Tomé e Príncipe e Timor-Leste; assim como da Região Administrativa Especial de Macau, na República Popular da China. Uma língua pluricontinental, pois: na prática, tendo em conta a diáspora lusófona, abrange os cinco continentes.

Algures em 2022 ou 2023, o conjunto de pessoas que habitam naqueles nove países e nesta região há de ter ultrapassado os 300 milhões. São 215 milhões no Brasil; Angola e Moçambique já passaram a barreira dos 30 milhões; Portugal tem 10 milhões e os restantes países compõem a parte sobrante.

Nem todos falam o português. São praticamente todos em Portugal, no Brasil e em S. Tomé e Príncipe; mais de dois terços em Angola; quase um terço em Moçambique. Por isso, a estimativa do número de falantes aponta para uns 253 milhões (Luís Reto, coord., A língua portuguesa como ativo global, Lisboa: Imprensa Nacional, 2022). Trata-se, assim, de uma das línguas mais faladas no mundo, a mais falada no hemisfério Sul.

É também uma das que mais cresce. Possivelmente, uma das três que mais cresce e mais vai crescer. E por duas razões cumulativas.

Uma é o dinamismo demográfico dos países africanos. A população brasileira ainda está a aumentar, mas espera-se que estabilize nas próximas décadas e depois tenha alguma redução até ao fim deste século; a população portuguesa já está a diminuir e assim continuará; mas Angola ou Moçambique, que já cresceram imenso a seguir ao fim das respetivas guerras civis, vão ainda multiplicar várias vezes o total de residentes até ao fim do século XXI. Por conseguinte, as projeções atuais das Nações Unidas indicam que o conjunto dos países lusófonos vai passar dos 300 milhões de habitantes para 384 milhões por volta de 2050 e para 444 milhões cerca de 2100.

A segunda razão, igualmente importante, é que se vai expandindo o número de falantes de português, como língua materna, nos países africanos. A sua progressão é, aliás, fruto do processo de independência: os números atuais de falantes são muitíssimo superiores aos dos tempos coloniais.

Está, pois, a cumprir-se o sonho de António Ferreira, o qual, no século XVI, escreveu num poema: "Floresça, fale, cante, ouça-se e viva / a portuguesa língua". Língua que já foi sobretudo europeia, que hoje é sobretudo brasileira e que amanhã será sobretudo africana.

 

2. Língua de comunicação, da diáspora, de cultura

Não é, porém, apenas por razões de geografia e demografia que a língua portuguesa deve ser considerada como global. É-o também, pelo menos, por três outras razões.

A primeira é que é, com crescente importância, uma língua de comunicação internacional. Há negócios que se fazem em português, há migrações que se fazem em português e há organizações internacionais nas quais o português é língua oficial.

Tal é o caso da União Europeia, da Conferência Ibero-Americana, da União Africana e de várias organizações regionais africanas, do Mercosul. Isso significa que é uma língua-chave em diferentes geopolíticas — não apenas geografias, mas geopolíticas — e essa é outra razão adicional para a considerarmos uma língua global.

É-o também porque são globais as diásporas dos países que têm o português como língua oficial ou como uma das línguas oficiais. Os milhões de portugueses, brasileiros e africanos que são emigrantes ou descendentes de emigrantes são um poderoso fator da sua disseminação por praticamente todo o mundo.

Os idiomas também se comparam pelo lado da cultura e aí o que conta é a qualidade e a projeção das criações que os utilizam, na poesia, no romance, no teatro, no cinema, no audiovisual, na ciência. Veja-se o caso do italiano, cuja influência em muito excede o alcance demográfico, devido a ser uma língua da música e de outras artes (além de ser muito empregada na Igreja Católica).

Ora, também aqui se encontra uma razão (a terceira que pretendia indicar) para o processo de globalização da nossa língua. Alguns dos grandes escritores universais de hoje escrevem em português. O Prémio Camões quer precisamente pô-lo em relevo; e, até ao momento, consagrou escritores de cinco países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Portugal.

A equipa coordenada pelo Prof. Luís Reto estima (na obra já citada) em 13 milhões o número de pessoas em todo o mundo que estudam o português como língua estrangeira. Em comparação com o que se passava há 20 ou 30 anos, é um avanço real. Mas não basta. E, para que cresça, é essencial continuar a política de expansão dos estudos superiores em português e de internacionalização dos criadores e criações culturais em português, a par da afirmação do nosso idioma como língua de negócios e como língua materna ou de herança das comunidades lusófonas espalhadas pelo mundo.

 

3. Uma língua de todos os falantes

O grande desafio que temos pela frente é compreender e valorizar a enorme diversidade e plasticidade da nossa língua comum.

Primeiro: se é evidentemente a língua de Camões, ou de Camões e Pessoa, é também de muitos outros: de Guimarães Rosa, de Mia Couto, de Pepetela, de Germano de Almeida, de Patrícia Chiziane, de Luís Cardoso, só para falar de escritores; e de Amílcar Cabral, Joaquim Chissano, Fernando Henrique Cardoso e por aí fora. Habituemo-nos, pois, a alargar os horizontes quando quisermos associar a língua a estadistas, poetas ou cientistas.

Portugal não tem nenhuma espécie de direitos especiais sobre a língua portuguesa. Não tem mais nem tem menos direitos e responsabilidades do que os restantes países lusófonos.

Em segundo lugar, a língua portuguesa é a ou uma das línguas oficiais, em cada um destes países, por sua decisão soberana. Poder-se-ia talvez pensar que o facto de o português ser língua oficial, por exemplo, de Angola ou Moçambique era apenas, ou sobretudo, uma consequência da colonização; e até que a persistência desse estatuto, face às línguas indígenas, seria uma manifestação neocolonial. Mas isso seria falsificar as coisas.

Por um lado, foram os movimentos de libertação - antes mesmo da independência – que escolheram fazer do português a língua dos futuros Estados. Essa foi uma opção estratégica e um instrumento decisivo para a construção e consolidação do novo Estado como um Estado nacional. O caso de Angola parece-me evidente. Mas, também em Moçambique, é possível observar a importância decisiva do português como língua veicular, a língua em que podem comunicar populações da mesma comunidade nacional, cujas línguas maternas não são, por vezes, intercompreensíveis.

Por outro lado, o número de falantes de português hoje, nesses países, não tem nenhuma espécie de comparação com o que se registava no tempo colonial. Eram uma pequeníssima minoria os que o dominavam e usavam, em Angola ou Moçambique, antes da independência. Hoje, como já vimos, são dois terços dos angolanos e um terço dos moçambicanos.

Tenhamos sempre presentes estes dois factos: o estatuto oficial do português é uma decisão soberana de Estados independentes – claro que influenciada, mas não determinada unicamente pela história colonial; e o progresso do uso quotidiano do português, entre a população, é uma conquista da independência, não uma sobrevivência do colonialismo.

O que também significa – terceiro ponto que queria salientar – que cada país lusófono é dono da língua portuguesa, para o passado e para o futuro. Veja-se o exemplo de Cabo Verde.  De acordo com o artigo 9.º da respetiva Constituição, "é língua oficial o Português" e "o Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa", tendo "todos os cidadãos nacionais […] o dever de conhecer as línguas oficiais e o direito de usá-las". Estão, pois, em causa questões tão importantes (e complexas) como a relação entre vários crioulos insulares e uma língua cabo-verdiana enquanto tal, ou a definição da língua ou línguas de ensino a utilizar nos diferentes níveis de instrução. Questões em debate nas instituições, nos círculos de especialistas e na opinião pública do país de Germano de Almeida; e que compete aos seus cidadãos dirimir. A atitude da cooperação portuguesa é, pois, de respeito e apoio, no que diz respeito à educação em geral e, em particular, ao ensino em português, qualquer que venha a ser a decisão das autoridades.

Também no que toca aos outros países de língua portuguesa, prevalece o mesmíssimo princípio de que o futuro da língua portuguesa cabe a cada um: ela é sua, sua no presente e sua no futuro. Cada um há de curar, designadamente, de saber como articulá-la com as outras línguas que se falam nos seus territórios e diásporas.

O que em nada diminui o imenso valor da língua como recurso comum, como património coletivo, ativo, não só de cada país, mas da Comunidade de base linguística que no seu conjunto formam: a CPLP. A sua natureza pluricêntrica, com duas variedades claramente diferenciadas (brasileira e europeia) e outras em formação (em África), em nada prejudica, antes enriquece, este formidável recurso partilhado. E eis o meu quarto ponto.

As consequências para a política da língua são óbvias. Há um nível de gestão ou governação da língua que só pode ser responsabilidade de todos – a qual deve ser, desejavelmente, cada vez mais assumida pelo Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP), como instrumento principal da CPLP para tal efeito.

Há, neste aspeto, um antes e um depois do Acordo Ortográfico de 1990. Não pretendo relevar o conteúdo, mas sim a metodologia. Antes do Acordo, vigorava uma espécie de condomínio luso-brasileiro: Portugal e o Brasil lá se iam entendendo e aos restantes cabia seguirem tal entendimento, sendo apenas aplicadores, não legisladores. Em 1990, esse duopólio acabou – e para sempre. O novo Acordo é subscrito por sete Estados soberanos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe; tendo vindo a aderir subsequentemente Timor-Leste independente. A língua global que é o português é, pois, recurso e responsabilidade de todos.

 

4. Encontros

A língua é uma realidade viva. Não evolui por decreto; a sua evolução resulta de dinâmicas linguísticas, sociais, culturais, literárias; e à legislação compete, isso sim, acompanhá-la e enquadrá-la. O nosso idioma é uma realidade particularmente dinâmica, pelas razões demográficas, geográficas e linguísticas que já aqui recordei. Língua global, o português assume e assumirá diferentes variedades. Eis um dado incontornável, razão bastante para ignorar qualquer tentativa de uniformização e centralização. E, insisto, uma riqueza, assim a saibamos potenciar através do contacto e da colaboração entre os seus falantes e as autoridades pertinentes.

O que passa, de uma banda, pelo reconhecimento, o registo, o estudo de cada variedade. Desse ponto de vista, tenho na minha memória, para além de 1990, data do Acordo Ortográfico subscrito a sete, outra data-chave, 2021. O ano em que se iniciou o DiPoMo, projeto de elaboração e publicação do primeiro Dicionário do Português de Moçambique. Ele é realizado sob coordenação geral da prof.ª Inês Machungo, na Universidade Eduardo Mondlane, e financiado pelo Instituto Camões, através do IILP.

É um trabalho de monta, que está em curso e durará vários anos. No seu termo, passaremos a ter o primeiro dicionário de língua portuguesa elaborado e editado fora de Portugal e do Brasil. Outro ponto de viragem.

Da outra banda, a valorização da língua pluricêntrica que é o português passa pela cooperação internacional na sua gestão e promoção, a elaboração e disponibilização de instrumentos como os vocabulários e terminologias comuns e de materiais para professores e estudantes. Tudo também tarefas essenciais do IILP.

É por isso que gosto de me referir à famosa frase escrita por Fernando Pessoa no Livro do Desassossego – "a minha pátria é a língua portuguesa" – citando a adaptação de Mia Couto: "a minha pátria é a minha língua portuguesa". Para beneficiar do duplo sentido: é minha língua na variedade em que a falo, é minha porque também a mim me pertence.

Este duplo sentido parece-me fundamental para encarar a realidade e as perspetivas do português como língua global, pluricontinental e pluricêntrica. A palavra-chave é: encontro.

Encontros. As variedades não se alinham necessariamente por estritas divisórias territoriais; é ver como a variedade brasileira se fala em Portugal (e a europeia no Brasil), por via das respetivas diásporas, ou como crioulos da Guiné e Cabo Verde são correntes em vários bairros de Lisboa. Muitos mais exemplos poderiam ser carreados. As variedades interinfluenciam-se: quantas vezes se usa, hoje, em Portugal, para designar uma discórdia, a palavra "maka", do quimbundo; quantos brasileirismos já entraram no vocabulário moçambicano ou português? A exibição de novelas brasileiras (ou angolana) em Portugal e de canais portugueses ou brasileiros em África veio dar uma nova amplitude a estes processos de cruzamento e hibridização. Mas o fator principal é mesmo a circulação das pessoas: e o aumento da mobilidade humana no espaço da CPLP proporcionará cada vez mais tais encontros, com consequências para a evolução da língua. Aliás, esta dinâmica de influência recíproca não se faz sentir apenas no interior da língua pluricêntrica, mas também no seu contacto com outras línguas faladas nos mesmos espaços territoriais: com os crioulos cabo-verdianos ou guineense, as outras línguas maternas de Moçambique e Angola, as línguas indígenas brasileiras ou o tétum timorense.

Claro que a formação e a consolidação de variedades configuram em si mesmas um acréscimo de diversidade; e favorecem possíveis afastamentos, que uma conceção tradicionalista da língua descreveria como centrífugos, mas que já sabemos não poder ser assim caracterizados, porque esta língua tem vários centros. De qualquer modo, devemos ter consciência desses movimentos e dos desafios que põem à ação pública. 

Eles devem ser enfrentados, como já vimos, no plano específico da política de língua e, especificamente, através da cooperação entre os países lusófonos, estruturada através do IILP. Mas é também essencial o interconhecimento das variedades e falares e das criações literárias e culturais que naquelas se exprimem.

A melhor maneira de uma falante do português europeu compreender um falante da variedade brasileira é, de facto, ter um contacto regular não só com as pessoas, mas também com as obras referidas a essa variedade. E reciprocamente. O mesmo vale para todos restantes casos. Assim, o lugar das trocas culturais é estratégico. Vermos o cinema e o teatro uns dos outros, lermos a poesia, os contos e romances uns dos outros, estudarmos os artigos e livros científicos uns dos outros, frequentarmos as revistas físicas e digitais uns dos outros, participarmos nos colóquios e conferências uns dos outros. E estimularmos esse encontro nas nossas políticas de ensino, de cultura, de média e de ciência.

 É, por exemplo, aqui na Polónia, a cátedra de português na Universidade de Lublin, ter, entre os seus temas de estudo, além do patrono, Virgílio Ferreira, escritores brasileiros, timorenses, moçambicanos. É, outro exemplo, as comitivas que o Instituto Camões leva às feiras do livro, incluírem sistematicamente escritores de língua portuguesa de outros países que não Portugal. É, ainda outro exemplo, o facto de, nas escolas dos Países Baixos em que, sob responsabilidade do Governo de Lisboa, se ensina língua portuguesa a crianças filhas de portugueses emigrados, ela ser ensinada também a filhos de famílias cabo-verdianas. É, último exemplo de uma lista que haveria de ser longa, as universidades dos países de língua portuguesa se organizarem em associação, no quadro da CPLP, e manterem programas de cooperação e intercâmbio.

Este ambiente, esta rede de trocas interculturais entre os nossos países é decisiva para desenvolver e afirmar a língua portuguesa como língua global do século XXI. Eis a minha mensagem. Não nos quedemos pela constatação dos números da demografia, agora e no próximo futuro, pensando "já está, quão importantes somos!". Por muitos milhões de falantes que possamos exibir (e são de facto muitos), não basta propagandeá-los.

Vejo os decisores, técnicos, professores muito conscientes desta necessidade de não repousar sobre os números. Devendo falar apenas do lado de Portugal, julgo que a mesma consciência existe, ou virá a existir, noutros países de língua portuguesa. No que nos toca, mercê dos esforços do Instituto Camões o português é atualmente aprendido, como língua estrangeira curricular, no ensino secundário de 34 países do mundo (35, se contarmos com a Escócia, que tem o seu próprio sistema de ensino); e, ao nível superior, há estudos portugueses em 76 países, com licenciaturas, mestrados, doutoramentos, cátedras e centros de investigação.

Um desses países é a Polónia. Há quase 45 anos que, nesta mesma Universidade, muitos professores, investigadores e estudantes, vêm construindo um espaço de excelência para o estudo, a difusão e a aprendizagem da língua, assim que dos países que a usam e das culturas que com ela trabalham. Perdoem-me o tempo que levei para chegar ao que queria: na presença de vários deputados portugueses, que fazem o favor de me acompanhar na visita, em nome da Assembleia da República, que representa Portugal na diversidade dos seus territórios e opiniões, deixar-vos, professores e estudantes que aqui estais, e a todos os vossos colegas, um agradecimento simples, mas sentido. A língua portuguesa também vos pertence.


[1]Conferência comemorativa do Dia Mundial da Língua Portuguesa, no Instituto de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos da Universidade de Varsóvia, 5 de maio de 2023.