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Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na Sessão Plenária de 29 de março de 2022

 
 


Senhores e senhoras Deputadas, caras e caros Colegas:

Sem​ esquecer o "muito obrigado!" que devo ao Grupo Parlamentar do Partido Socialista, proponente da minha candidatura, dirijo-me a todos, porque de todos serei presidente.

Agradeço a confiança que acabais de me manifestar, elegendo-me para presidente da Assembleia da República, isto é, escolhendo-me para a prestigiosa e exigente posição de primeiro entre pares. Procurarei merecer a honra que assim me concedeis, exercendo uma presidência imparcial, contida e aglutinadora, preservando a individualidade de cada deputada e de cada deputado, respeitando a independência e a agenda de todos os grupos parlamentares, defendendo o papel e a imagem do Parlamento e garantindo a todos as melhores condições para o exercício pleno e produtivo dos respetivos mandatos, seja no plenário, seja nas comissões e grupos de trabalho, seja no indispensável contacto direto e permanente com os eleitores.

Saúdo os funcionários da Assembleia e os elementos das Forças de Segurança que aqui prestam serviço. Também a eles desejo assegurar uma presidência justa e eficaz, para que a realização profissional continue a ser a melhor via para o desempenho organizacional.

Saúdo as senhoras e senhores jornalistas, cujo trabalho de informação e mediação é tão importante para o conhecimento e o escrutínio do que fazemos.

Saúdo ainda os órgãos reguladores, os conselhos e comissões que funcionam junto da Assembleia, prometendo-lhes a melhor colaboração.

Saúdo finalmente a Presidência da República, o Governo e os Tribunais, com os quais o Parlamento prosseguirá uma relação de harmonia e respeito mútuo, no escrupuloso cumprimento dos preceitos constitucionais e da tradição democrática portuguesa. Assim como saúdo as Regiões Autónomas e suas Assembleias e Governos, as Autarquias Locais e suas associações, as Forças Armadas, as Forças e Serviços de Segurança, os parceiros sociais, todas as confissões religiosas praticadas em Portugal, as instituições de ensino, ciência, cultura e inovação, as organizações não governamentais e demais estruturas da sociedade civil; e saúdo especialmente todos os partidos políticos, sem os quais não existe democracia pluralista.

 

Caros e caras Colegas:

É uma honra, que excede seguramente o mérito pessoal, esta que me dais de ocupar a mesma cadeira em que, após a madrugada libertadora, se sentou Henrique de Barros; e de me seguir a figuras como Almeida Santos, Mota Amaral, Jaime Gama, Assunção Esteves e Ferro Rodrigues, só para citar os que presidiram a esta casa no último quarto de século. Permiti-me uma menção particular ao último, não só por ser aquele a quem diretamente sucedo, mas sobretudo porque o Eduardo Ferro Rodrigues, com quem partilho um percurso político com mais de quatro décadas, é, para mim como para tantos outros, uma inspiração maior de empenhamento cívico, coerência política, exigência ética e integridade pessoal – um exemplo vivo da máxima de Ricardo Reis, "para ser grande sê inteiro".

O terdes escolhido a mim, e na minha circunstância, tem um significado político que me transcende, e nele me devo concentrar. Tanto quanto sei, serei o primeiro presidente do Parlamento com origem, atividade profissional e residência permanente na cidade do Porto; e já isso mereceria referência, porque é também uma maneira de demonstrar que aqui está representado o conjunto da Nação e do seu território. Todavia, muito mais relevante, do ponto de vista político e simbólico, é o facto de hoje ser o dia inaugural de a ocupação desta cadeira se fazer por deputado eleito por um círculo da emigração.

Assim, a representação parlamentar dos dois milhões e trezentos mil portadores de cartão de cidadão português residentes no estrangeiro (e dos mais de cinco milhões que, quando acrescentamos a estes os seus descendentes, estimamos formarem as nossas comunidades), tal representação atinge toda a sua plenitude, porque é assumida também por quem, além de deputado, é presidente do Parlamento.

A dimensão pessoal deste processo é irrelevante. Eu sou apenas o primeiro sopro de um vento que perdurará. Mas a dimensão institucional e simbólica, essa, é absolutamente decisiva. O ato de hoje exprime, melhor que qualquer outro, a representação verdadeiramente nacional que a Assembleia constitui, quer na diversidade das ideias quer na variedade dos territórios: é uma das melhores maneiras de dizer aos compatriotas que vivem e trabalham fora do país, em todos os continentes e em quase todas as nações, que os ouvimos, que neles pensamos, que deles cuidamos, que deles se faz também Portugal.

 

Senhoras e senhores Deputados:

Elegendo para vosso presidente um deputado eleito pelas comunidades, não só fortaleceis a unidade nacional, como reforçais a nossa capacidade de projeção internacional e de influência global.

Quaisquer que fossem as funções que ocupasse, fui sempre dizendo, ao longo dos anos, que a explicação para que a influência de Portugal excedesse em muito o que resultaria do efeito mecânico da sua dimensão demográfica, territorial, económica ou militar estava, bem entendido, na sua história, no perfil contemporâneo de país democrático, pacífico, coeso e desenvolvido, e na constância de uma política externa aberta ao mundo e defensora do multilateralismo e do direito internacional. Ia, porém, além disso, porque dispunha de dois fantásticos recursos de "poder suave", ou influência: as comunidades e a língua. As comunidades que sinalizam a nossa presença em todo o mundo e em todo o mundo protagonizam o que somos, o que queremos e a maneira de os outros nos verem. E a língua, a língua que partilhamos com outros povos, a língua mais falada no Hemisfério Sul, uma das que mais cresce, a língua que é a ferramenta quotidiana de mais de 260 milhões de pessoas, servindo para a expressão de múltiplas culturas, a língua que, sendo nossa pátria, é a pátria de outros, cada povo fazendo dela pátria ao seu modo próprio, de tal modo que a língua portuguesa é hoje, ao mesmo tempo, o fator de construção de pátrias distintas e o laço mais forte e perene de ligação entre essas pátrias.

E a que vem isto, num discurso parlamentar? Pois vem por duas razões fundamentais.

A primeira é que basta olhar para a natureza pluricêntrica da língua em que nos exprimimos - cada um na sua variedade, da relação de tais variedades se fazendo a pujança da língua comum - para compreender que o patriotismo só medra no combate constante a todos os excessos de nacionalismo. O patriota, porque ama a sua pátria, enaltece o amor dos outros pelas pátrias respetivas e percebe que só na pluralidade das pátrias floresce verdadeiramente a sua. O nacionalista, porém, odeia a pátria dos outros, quer fechar a sua ao contacto com as demais, discrimina quem é diferente e, em vez de hospitalidade, promete ostracismo. Basta, pois, pensar num minuto na incrível força desta língua de tantas pátrias que é a língua portuguesa para entender da forma mais profunda que o bom requisito para ser patriota é não ser nacionalista – é não ter medo de abrir fronteiras, de integrar migrantes, de acolher refugiados, de praticar o comércio e as trocas culturais.

A segunda razão porque invoco aqui a nossa língua é que ela é naturalmente o quadro em que elaboramos e exprimimos o pensamento. Os limites da linguagem são os limites do pensamento, como é geralmente sabido, o que significa também que os recursos da linguagem são poderosos recursos do pensamento. Este por vossa vontade vosso presidente, que considera que o seu mais nobre encargo é esse, singelo, de dar a palavra a quem a pede, gostaria que a liberdade de quem fica assim investido do poder da palavra fosse adornada com o cuidado pela língua em que a palavra se exprime.

Decerto que de outras línguas se haveria de dizer o que vou referir de seguida, mas falo aqui do português e em português falo: a nossa língua, que (para invocar Virgílio Ferreira e Sophia ou Eugénio de Andrade) tem a vastidão do mar e a limpidez da luz, a língua de Vieira, de Eça, de Drummond de Andrade, de Lispector, de Luandino, de Mia Couto, de Saramago e tantos outros, esta nossa língua não é de feição para vociferar fórmulas vazias. É uma língua que se fez e transformou e evoluiu em encontros, em descobertas, em miscigenações. É uma língua poética, que abre para o outro e não se contenta com as evidências, uma língua que indaga e que imagina, e em que, portanto, soam postiças as frases feitas que atiram pedras em vez de argumentos e que cegam em vez de iluminar.

O sinal de pontuação de que a democracia mais precisa é o ponto de interrogação. O sinal que mais dispensa é o ponto de exclamação que, ao contrário do que acontece com os fanatismos de toda a sorte (como tão bem mostrou Amos Oz), a democracia deve usar com parcimónia. Deixemos as certezas aos néscios e cultivemos sem temor a nossa capacidade de questionar e inquirir. A interrogação sacode os preconceitos, abre caminhos, convida a ouvir as várias respostas, trava o passo ao dogmatismo e à intolerância.

Ouvi muitas vezes Mário Soares dizer que a sua única arma, como político, era a palavra. Nada mais certeiro. A palavra cria e exprime as ideias, partilha as ideias, permite argumentar, comunicar, compreender, interpretar, convencer, motivar. O Parlamento é a casa da palavra, da palavra livre, tantas vezes incómoda, agreste, dura. Da palavra necessária e com a medida de necessidade que exigir a circunstância. Todas as ideias podem ser trazidas, mesmo aquelas que contestam a democracia, porque essa é a vantagem óbvia da democracia sobre a ditadura.

Por mais esdrúxulas que sejam ou pareçam ser, a expressão das ideias pelos outros deve ser acolhida com cortesia, que não é por impedir o outro de se exprimir que alguém fica com a razão. E as ideias próprias não precisam de ser gritadas, porque a qualidade dos argumentos não se mede em decibéis.

O único discurso sem lugar aqui há de ser o discurso do ódio, quer dizer, o discurso que negar a dignidade humana seja a quem for, o discurso que insultar o outro só porque o outro é diferente, o discurso que discriminar, seja qual for o motivo da discriminação, o discurso que incitar à violência e à perseguição. A liberdade e a igualdade custaram demasiado para que agora pudéssemos aceitar regredir para novos tempos de barbárie.

 

Senhoras e senhores Deputados:

A XV Legislatura inicia-se, no que a Portugal respeita, num momento luminoso: aquele em que o regime democrático cumpriu finalmente mais dias do que a mais longa ditadura que a Europa conheceu no século XX. Em 2024 assinalaremos os 50 anos da Revolução dos Cravos e, em 2026, o cinquentenário da Constituição da República. Já em 2022 passa o bicentenário da primeira Constituição portuguesa. Todos estes passos da história democrática serão devidamente assinalados no Parlamento.

Mas os tempos que vivemos, na Europa e no mundo, são tempos muito difíceis. A guerra da Rússia contra a Ucrânia e as suas consequências estratégicas, económicas e sociais, se interpelam profundamente a nossa consciência, também impõem a reafirmação do nosso posicionamento geopolítico e a elaboração e aplicação de políticas públicas que acautelem a economia, o emprego e a coesão social. Temos elevadas responsabilidades, quer nacional quer internacionalmente, designadamente como membros das Nações Unidas, da União Europeia e da Aliança Atlântica. Saúdo, em particular, as Forças Armadas, agora chamadas a novas tarefas, que, se necessário, desempenharão com a dedicação e a proficiência com que têm pautado a sua intervenção em missões de paz e outras operações no exterior.

A Assembleia da República, que é o espaço por excelência da representação da Nação em toda a sua diversidade e pluralidade de opiniões, para além das funções matriciais de produção legislativa e de fiscalização e escrutínio do Governo e da Administração, é o verdadeiro centro do debate político. Todos os temas relevantes são aqui trazidos e discutidos.

Mas o debate parlamentar requer o cumprimento de duas regras elementares. Uma é o respeito por todos os mandatos que resultam da livre expressão de voto dos Portugueses, quaisquer que sejam a representatividade eleitoral e as suas propostas programáticas. A outra regra é o respeito pela vontade popular, tal como ela se materializa na soma agregada dos votos individuais e se exprime na grandeza relativa dos diferentes grupos parlamentares.

Por um lado, o número dos deputados de um grupo não é razão bastante para pôr sequer em dúvida o exercício livre de cada mandato, com os meios necessários e nas condições do Regimento. Por outro lado, os direitos de cada deputado ou deputada não podem servir de pretexto para querer impor a distorção ou desrespeito pelas maiorias que o povo soberanamente constituiu. Eis o entendimento que seguirei, enquanto presidente, confiante de ser esse também o entendimento da Câmara.

Estes tempos difíceis, complexos, em que alguns dos pressupostos básicos da vida na Europa foram subitamente questionados e em que a incerteza parece ser a característica determinante do ambiente económico e estratégico, são tempos propícios a toda a espécie de manipulações, preconceitos e messianismos. Tempos em que pode prosperar o populismo, com as suas simplificações abusivas, as exclusões sumárias, a negação do pluralismo e da diversidade, a estigmatização dos vulneráveis e a culpabilização das vítimas, a invenção de inimigos e a substituição do debate pelo insulto.

A sociedade portuguesa não está imune a este vírus e, portanto, também não o está o Parlamento. Porém, a melhor maneira de combatê-lo é não lhe conceder mais relevância do que aquela que o povo português lhe quis atribuir; e é opor à violência excludente dos seus obsessivos pontos de exclamação a firme serenidade de quem sabe ter o apoio das pessoas e o conforto da razão. Uma razão que problematiza, que interroga, que ouve, que avalia, que corrige – e por isso é, ela sim, a razão democrática.

Essa razão crítica, tolerante e esclarecida a que será, doravante, por vossa escolha, minha honra conceder a palavra.

Muito obrigado.