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Ler e celebrar Eduardo Lourenco

Augusto Santos Silva

Se fosse vivo, Eduardo Lourenço faria hoje, 23 de maio, 99 anos. O município de Almeida, sua terra natal, inaugura um mural em sua homenagem, criado por Graça Morais. É uma excelente maneira de começar um ano que deverá ser de celebração de um dos maiores pensadores portugueses de todos os tempos.

Não faltam motivos. O mais importante é que ele continua a ser uma referência de pensamento crítico e livre. 

Desde o primeiro livro (Heterodoxia I, 1949) e ao longo de toda a sua obra, o ensaísmo de Lourenço construiu-se sobre a recusa de qualquer dogmática e a abertura à descoberta intelectual, desbravando caminhos, questionando certezas, propondo novas maneiras de ver velhas coisas. Na sua preferência pelo género ensaístico esteve também, ao que creio, a consciência da incompletude de qualquer conhecimento digno desse nome, a convicção de que a pergunta, a hipótese, a intuição, o debate argumentado – quer dizer, o ensaio como tentativa – fazem adiantar o nosso saber muito mais do que todas as demonstrações supostamente já conclusas.

Este exercício de problematização e, não raras vezes, desconstrução é uma força motriz da obra de Eduardo Lourenço. Com as doses indispensáveis de iconoclastia, irreverência e ironia. Mesmo quando a ironia o traiu (como aconteceu na receção a O Fascismo Nunca Existiu, 1976), não foi porque a sua ironia fosse excessiva ou deslocada, mas sim porque, como bem disse Fernando Pessoa, o sintoma maior do provincianismo é a incompreensão da ironia.

Eis, pois, uma primeira grande lição que devemos a Eduardo Lourenço: o princípio do pensamento livre e o valor do conhecimento como aproximação, como ensaio de entendimento do mundo e de nós próprios, como demanda permanente e inacabada.

Devemos-lhe, em seguida, os resultados da aplicação desta escolha básica. No domínio da cultura, pertencem-lhe intuições e desenvolvimentos analíticos que trouxeram outras perspetivas de compreensão e apreciação de autores, obras ou gerações literárias. Pense-se, por exemplo, na sua "revisitação" de Pessoa (Fernando Pessoa Revisitado, 1973, ou Fernando Rei da Nossa Baviera, 1986), nos vários estudos sobre poesia, na identificação da "literatura desenvolta" dos anos 60 ou nos ensaios sobre Camões, Antero, Sena e Vergílio Ferreira. Pense-se também nos textos sobre filosofia europeia, música ou pintura e na constante reflexão crítica sobre as sombras e os paradoxos da modernidade ocidental e do seu endeusamento da Razão.

Não quero com isto diminuir a relevância da faceta mais conhecida de Lourenço, a de "pensador de Portugal". Pelo contrário. Embora "pensar Portugal" seja filão explorado recorrentemente e de múltiplas formas, fonte de várias reputações e de não menos equívocos, o contributo do autor de O Labirinto da Saudade (1978) e de Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade (1999) é, também aí, singular. Porque aplica o seu esforço analítico à própria mitologia identitária portuguesa e é a ela que toma por tema. Na mesma linha se situam outras indagações críticas, ou mesmo desconstruções, que lhe devemos, sobre a experiência colonial portuguesa e o seu legado (Do Colonialismo como Nosso Impensado, 2014), sobre o entendimento normativo e tardo-luso-tropicalista de lusofonia (A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia, 1999), ou a perspetiva da integração europeia (Nós e a Europa ou as Duas Razões, 1988).

O facto é que Eduardo Lourenço, estivesse em França ou em Portugal, sempre foi um observador atento da sociedade e a da história política portuguesa. Foi, nomeadamente, um comentador da transição democrática e da transformação estrutural do nosso país, sabendo combinar uma inegável proximidade afetiva com distanciamento, problematização e, até, melancolia (por exemplo, Os Militares e o Poder, 1975, e O Complexo de Marx ou o Fim do Desafio Português, 1979). Com um pensamento social e político bem ancorado na esquerda democrática europeia, foi um questionador implacável dos seus impasses e rendições, deixando-nos textos de uma lucidez implacável sobre os desafios que ela enfrentava na passagem dos dois séculos (entre outros, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?, 2009). Também por isso se deve salientar o facto de ter sido o diretor da revista de pensamento político Finisterra, da fundação até à sua morte, e o seu empenhamento junto e dentro do Partido Socialista.

Poderia continuar esta evocação despretensiosa, mas o que fica escrito já bastará para que tenhamos a consciência de quão importante, mas também quão delicado, é celebrar a obra e o legado de Eduardo Lourenço. As efemérides servem para refrescar as memórias e motivar os inventários. Que o centenário do nascimento de Eduardo Lourenço, que passará daqui a exatamente um ano, nos motive a todos para revisitá-lo. A todos, quero dizer, os que ele interpelou e, interpelando, ajudou a crescer através do exercício do pensamento livre: o campo literário e cultural, a academia, as instituições políticas, a imprensa e a opinião pública.

Mas revisitemo-lo como ele revisitou outros e decerto gostaria que o revisitássemos a ele: sem reverências nem formalismos, antes com imaginação e a partir do nosso tempo. Não é preciso muito: basta lê-lo e pensar um pouco, como se respirássemos. 


23 de maio de 2022 | Público