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Adriano Moreira na galeria democrática

Augusto Santos Silva

Politicamente, Adriano Moreira viveu duas impossibilidades.

Viveu a primeira no Estado Novo e foi a impossibilidade de modernizar a administração colonial portuguesa. Para isso aceitou, em 1961, ser ministro do Ultramar de Salazar e a ilusão durou dois anos, até ser afastado e votado, consecutivamente, a uma espécie de ostracismo pelo Estado Novo. Era inviável introduzir qualquer medida minimamente humanista, ou sequer de racionalidade gestionária, sem pôr em causa o quadro geral da dominação colonial. Em 1961, seis anos depois da entrada de Portugal nas Nações Unidas, com a descolonização dos antigos impérios europeus em curso, com a orientação política norte-americana e com a emergência e afirmação das lideranças africanas, não se podia fazer qualquer reforma nas colónias aceitando as premissas básicas do colonialismo, ou seja, que as colónias continuassem colónias.

A segunda impossibilidade, viveu-a Adriana Moreira já no regime democrático, com especial ênfase nos anos oitenta e noventa, e foi a impossibilidade de afirmar, no seio da direita portuguesa, uma forte corrente democrata-cristã, vinculada à doutrina social da Igreja. O que foi especialmente visível quando a maioria absoluta do primeiro-ministro Cavaco Silva empurrou o CDS para um espaço residual, mas foi e vai muito mais além, tendo a ver com dificuldades estruturais de posicionamento político e ideológico do nosso campo mais conservador.

Adriano Moreira viveu essas duas impossibilidades com honra. Demitindo-se do Governo e distanciando-se do Estado Novo, no caso da primeira; persistindo com a reflexão e doutrinação pública a favor da democracia-cristã e do seu diálogo com as outras correntes sociais e democráticas, designadamente através da sua atividade de publicista, no caso da segunda.

Intelectualmente, o papel de Adriano Moreira foi de grande relevo e em várias áreas. É um dos fundadores dos estudos estratégicos em Portugal, e a sua obra e ensino marcou o desenvolvimento das instituições ligadas à segurança e à defesa nacional. Em particular, a dívida dos estudos superiores militares ao seu labor não oferece qualquer dúvida.

Foi também um pensador sólido, coerente e original sobre as questões do Estado e das relações internacionais, que abordou a partir da perspetiva da longa duração e da continuidade multissecular. Contribuiu notavelmente para a Universidade e foi um dos atores da transição bem-sucedida da antiga escola de quadros coloniais (o ISCSPU) para a atual escola de ciências da sociedade e da administração (o ISCSP). Procurou também atualizar a reflexão sobre o papel de Portugal no mundo, e junto dos países de língua portuguesa, depois da democratização, da descolonização e da integração europeia.

Eticamente, Adriano Moreira é há muitos anos um exemplo de vida dedicada ao serviço público, de patriotismo, de abertura ao diálogo, de integridade moral, de coerência e disponibilidade. Sabemo-lo os muitos que, no Governo ou fora dele, filiados em distintas famílias políticas, em algum momento buscámos o seu conselho e sageza, sempre recebendo resposta pronta e fecunda. Sabem-no as várias gerações de alunos e formandos que ele moldou ao longo de décadas. Sabem-no a opinião pública e instituições tão importantes como o Parlamento, os partidos, as academias ou as Forças Armadas.

Diz-se muitas vezes que Adriano Moreira foi homem de dois regimes, ou até que fez a ponte entre eles. Percebo o argumento, mas creio que não capta o essencial. A meu ver, o essencial é isto: foi a democracia que o reconheceu e valorizou. Foi a democracia que lhe permitiu, enfim, sentar-se na Assembleia pluripartidária e soberana da República, em resultado da escolha livre dos seus concidadãos, a Assembleia que o elegeu vice-presidente, o admirou e lhe agradeceu unanimemente o contributo, quando a abandonou. Foi na democracia que pôde defender livremente as suas ideias, liderar um partido, doutrinar nas Forças Armadas, ter o reconhecimento que merecia no meio universitário e académico.

Eu sei que Adriano Moreira gostava de assinalar a continuidade histórica da nação e do Estado português e identificar o que achava serem os interesses nacionais permanentes, mais do que atender à sucessão e diversidade dos regimes políticos e das conjunturas económicas e sociais. Entendo, porém, que o lugar que lhe pertence, o lugar em que o devemos colocar, é na nossa galeria democrática – nessa galeria onde cabem homens e mulheres das mais variadas origens, convicções e projetos. Por um lado, foi a democracia que mais o escutou e respeitou, que lhe ofereceu o ambiente indispensável para a expressão e a troca de ideias. Por outro lado, ele ajudou a democracia a compreender-se a si própria na longa duração dos nove séculos da nossa história e a interpretar adequadamente o que, tendo-se formado e consolidado no fio das eras, determina também a nossa identidade e papel no mundo.

Para mim, é isto que é Adriano Moreira: uma figura do Portugal democrático, que o Portugal democrático soube felizmente acolher, integrar e homenagear a tempo.


24 de outubro de 2022 | Público