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06.01.2020 | Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial | Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa

Quero começar por me congratular, uma vez mais, pela realização desta Cerimónia de Abertura do Ano Judicial, com a caraterística tão relevante de agregar titulares dos vários órgãos de soberania e os representantes mais significativos do sistema judiciário.

Creio que tal circunstância coloca bem em evidência uma das dimensões fundamentais do nosso Estado de Direito – a de que o respeito pelo princípio essencial da separação de poderes não prejudica a disponibilidade de todos, concorrendo na esfera própria das suas atribuições, para dar significado à interdependência como modo de cooperação, consideração e respeito devido a cada instituição na prossecução conjunta dessa tarefa fundamental do Estado que é a administração da justiça.

Cabe-me a mim exprimir perante todos vós a posição do legislador e dar notícia de algumas das dimensões que me parecem mais significativas do seu contributo recente para o aperfeiçoamento da ordem jurídica e das instituições do judiciário.

É, muito especialmente, o caso da aprovação e entrada em vigor no início do presente ano novo dos renovado e novo estatutos do Ministério Público e da magistratura judicial.

Se ao longo da apreciação das correspondentes propostas de lei muito sobre elas se discutiu e nem sempre com a serenidade e lucidez desejável, a verdade é que o resultado do trabalho legislativo clarificou o que carecia de ser clarificado e assentou numa maioria expressiva e de largo espetro, pressuposto que julgo muito positivo para conferir ao sistema de justiça um quadro suficiente de estabilidade e tranquilidade propícios ao bom desempenho das suas missões.

Respeitando o princípio do paralelismo nas duas carreiras da magistratura, o quadro legal em inteira conformidade com a Constituição, assegura sem margem para ambiguidades tanto a autonomia do Ministério Público face aos riscos de ingerência de quaisquer poderes externos como a subordinação hierárquica da respetiva magistratura como garantia da sua unidade, coesão e consistência de ação na defesa da legalidade democrática e da prossecução da ação penal.

Do mesmo passo aos juízes foi assegurada de pleno a sua titularidade do órgão de soberania tribunal e a sua capacidade de decisão independente na aplicação da justiça, de acordo com a Constituição e a lei.

Nos dois casos procurou-se conformar as respetivas estruturas e procedimentos às necessidades do sistema judiciário, ele próprio alvo de significativas inovações, largamente dirigidas a promover a maior eficácia da administração da justiça e a sua concretização em tempo útil, desígnio fundamental da nossa democracia.

Noutro plano, mas igualmente convergente com os anteriores, a Assembleia da República procurou encontrar respostas adequadas a um dos maiores desafios do nosso tempo – o da exigência de transparência no que respeita ao funcionamento das instituições e ao estatuto dos seus titulares.

Deu-se assim resposta detalhada, nomeadamente às observações críticas constantes do relatório do GRECO.

Inovadoramente, foi estendida também aos magistrados o dever de apresentação das declarações de rendimento e património, merecendo ser sublinhado o clima de grande consenso partilhado pelas suas instituições representativas.

Para os titulares de cargos políticos em geral e para os altos quadros da administração pública, do setor empresarial público e entidades administrativas independentes, foi-se mais longe ao consagrar regras de disciplina relativamente a ofertas e hospitalidade bem como à necessidade de elaboração e cumprimento de códigos de conduta setoriais.

E creio que é pertinente referi-lo neste momento e nesta sede.

Se à luz dos direitos fundamentais ligados à presunção de inocência e à proibição de inversão do ónus da prova, o Tribunal Constitucional firmou inequívoca jurisprudência quanto à proibição do tipo legal de crime designado de enriquecimento ilícito, a lei recentemente aprovada estabeleceu, de modo claro, a ilicitude penal das falsas declarações de rendimentos e património doravante sujeitas a sanção penal para todos os sujeitos a esse dever declaratório.

Para além da possibilidade da mão pesada da autoridade tributária legalmente autorizada a promover a perda de rendimentos não justificados.

O quadro legislativo relativo aos decisores públicos apresenta-se por isso inequivocamente exigente em matéria de rigor e transparência e tal só não é reconhecido por parte de quem por má-fé ou lamentável ignorância apenas esteja apostado em denegrir a dignidade das instituições democráticas.

Importa entretanto, sem margem para hesitações, estabelecer os meios imprescindíveis à boa execução das leis.

É esse o processo que, em matéria de transparência, também agora se inicia, designadamente no quadro da apreciação do Orçamento do Estado para 2020.

Estou confiante que, tal como superámos bem os desafios anteriores, superaremos este.

Em concreto, impõe-se a boa cooperação entre Governo, Assembleia da República, Tribunal Constitucional e Conselhos Superiores das Magistraturas, face às suas novas incumbências.

Acredito que todos saberão estar à altura das suas responsabilidades.

Falando de responsabilidades, creio ser também meu dever deixar uma palavra sobre tal domínio, no quadro da Assembleia da República que me incumbe representar.

Nem tudo são rosas num órgão de representação plural, composta de 230 Deputados de diferentes origens e credos políticos, num órgão que exprime o pluralismo, a diferença e o conflito inerentes à vivência plena da democracia e também o Presidente da Assembleia da República, como a generalidade dos cidadãos, espera do Parlamento contributos decisivos nas respostas a dar à solução dos problemas nacionais.

Mas o Presidente da Assembleia da República não assiste, indiferente, ao adensar de um certo clima antiparlamentar e em última análise contrário aos fundamentos da democracia representativa, que seguindo as modas do populismo vai atravessando o espaço público e encontra pretexto fácil nos descontentamentos do tempo para pôr em causa valores e princípios democráticos, de legítima consagração constitucional e evidente justificação histórica.

O Parlamento é, no Estado de Direito Democrático, a pedra angular da democracia. Não se sobrepõe a quaisquer outros órgãos do sistema constitucional mas também não abdica da sua autonomia, designadamente face a presunções de regeneração justicialista que não saibam respeitar os limites impostos pela autonomia da Instituição Parlamentar.

A alguns, espero que poucos, certos institutos inerentes à dignidade da instituição parlamentar como o regime da inviolabilidade, insindicabilidade judicial dos Deputados pelos seus votos e opiniões, imunidades e impedimentos parecem coisa do passado.

Para o Presidente da Assembleia da República tais institutos constituem, porém, matéria da maior atualidade que, se não for corajosamente preservada no presente, implicará a inevitável decadência do regime no futuro, às mãos dos inimigos da liberdade e dos arautos dos autoritarismos, dos providencialismos e tantas outras variantes musculadas dos inimigos da democracia.

Na verdade, a alguns, espero que poucos, a confusão entre níveis de responsabilização política ou até do dever de advertência, no plano dos procedimentos e suas consequências previstas para condutas internas inadequadas, parece anima-los na tentativa de legitimar procedimentos de investigação indiscriminada em busca de potenciais prevaricadores, para além dos próprios critérios de adequação que o Parlamento assuma para si próprio.

Acontece que o Parlamento é, por natureza, o órgão de Estado mais transparente e mais escrutinável entre todos.

Todos os dias os seus Deputados são avaliados à luz da opinião pública e publicada, sendo que as suas regras e procedimentos se encontram em quase constante revisão e aperfeiçoamento por se saber de experiência feita que altos padrões de exigência são cada vez mais indissociáveis na exigência da ética de comportamento qualquer que seja a ética de convicção.

Foi também por isso que a Assembleia da República optou por constituir sob forma legal uma Comissão específica para a Transparência e o Estatuto dos Deputados, à qual se cometeu a responsabilidade de velar pelo integral cumprimento das mencionadas matérias – tanto na sua projeção interna como na relação com as competentes entidades externas, com especial relevo para as de natureza judiciária.

Já na presente Legislatura a referida Comissão Parlamentar aprovou, ao abrigo das disposições legais em vigor, regras de funcionamento e de articulação interinstitucional para que, sem prejuízo da adequada apreciação de cada caso concreto, todos, dentro e fora da Instituição Parlamentar, conheçam de forma transparente os critérios de procedimento.

Creio que é assim que melhor poderemos servir a causa tanto da identidade do órgão de soberania Assembleia da República como da saudável cooperação, baseada na confiança, entre instituições, com relevo para as do sistema de justiça, compenetrando-se cada uma delas do seu campo de atuação, dos seus limites e do respeito devido à natureza de cada uma.

Precisamos todos de estar alerta face às tendências as mais das vezes inorgânicas e difusas que desprezam o valor de uma pedagogia institucional exigente para a substituir por retóricas que fazendo tábua rasa da natureza das instituições e da sua razão de ser apostam no imediatismo do estado espetáculo e no decisionismo de circunstância.

Por isso, fazer consistentemente a pedagogia do Estado de Direito Democrático, dos seus valores e dos seus princípios é, nisso creio firmemente, um desígnio que em nenhum momento deve abandonar os responsáveis políticos e todos quantos à frente das instituições cumprem nelas uma função relevante da ordem constitucional.

A dimensão da justiça está, como não poderia deixar de ser, na linha da frente desse desígnio.

Os debates mais uma vez em curso com relação a encontrar os modos mais eficazes de combater a criminalidade, especialmente a mais grave e ligada à corrupção e aos tráficos, voltarão certamente a ter eco nos trabalhos parlamentares.

Pela minha parte acredito que quaisquer respostas que busquem a necessária eficácia da justiça têm simultaneamente de buscar a necessária garantia da decência, entendendo por isso a vinculação ao princípio da legalidade sem cedência a espaços de arbítrio, de proteção utilitária, de insuficiência de apuramento justo dos factos e da culpa, com salvaguarda do julgamento e do contraditório.

Pela minha parte acredito que, apesar de todos os problemas e das insuficiências de resposta dos poderes públicos às constantes exigências de uma sociedade em mudança, os valores fundadores da revolução do 25 de Abril, plasmados e sucessivamente reafirmados na Constituição da República, estão aí para durar na história do Portugal do Século XXI.

Não deixará de haver quem os queira rever com critérios distintos do da defesa intransigente da dignidade da pessoa humana.

Cabe à geração atual estar à altura do legado que recebeu dos combatentes pela liberdade, pela igualdade e não discriminação, pela justiça justa fundada na legalidade democrática e apenas nela.

Vejo nesta cerimónia anual, em que se renovam os melhores propósitos da justiça em nome do povo, um testemunho claro de um mesmo propósito e de um mesmo compromisso.

E é com muita honra que, ao finalizar estas considerações, formulo um voto profundamente empenhado para que o ano de 2020 seja um ano de mais e melhor justiça para todos, de boa cooperação institucional entre todos, de orgulho legítimo de todos os democratas na afirmação dos valores da democracia, de humildade sem hipocrisia por parte dos decisores na compreensão de que a perenidade das instituições se sobrepõe à contingência dos seus titulares e que a defesa do prestígio de umas e da dignidade de outros implica para todos o dever de saber escutar, saber meditar, saber ponderar e saber decidir com olhos postos numa única motivação – a motivação de melhor concretizar o bem comum do povo que servimos.

Muito obrigado pela vossa atenção.

Eduardo Ferro Rodrigues
Presidente da Assembleia da República