Intervenção do Presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, no Almoço-debate do International Club of Portugal com o tema «Bom e o mau parlamentarismo»
29 de outubro de 2024
Permitam-me começar pela teoria. Pelos fundamentos filosóficos que sustentam a nossa vida comum.
Nós somos, no Ocidente, herdeiros de uma longa tradição política, que culminou no que hoje conhecemos como
democracia liberal.
Fórmula sempre imperfeita. Sempre inacabada. Mas que é, como tão bem dizia Churchill,
o pior de todos os regimes, à exceção de todos os outros.
Nas democracias liberais, o Parlamento ocupa um lugar fundamental. E hoje, mais do que nunca, tem uma centralidade política evidente.
Primeiro, um lugar de
representação.
O Parlamento reflete a diversidade de opiniões que existe na sociedade.
Por isso me tenho batido tanto pela liberdade de expressão dos deputados.
Porque acredito que o Parlamento é o lugar por excelência para todas as vozes se fazerem ouvir, segundo o voto dos cidadãos e no respeito pelo mandato popular que lhes foi conferido.
Devemos, assim, encarar com normalidade democrática a fragmentação das representações parlamentares, que muitos receavam ser bloqueadora do funcionamento da Assembleia, mas a que o nosso sistema constitucional tem dado boa resposta.
Em segundo lugar, o Parlamento exerce uma função
fiscalizadora.
Num quadro de separação de poderes, compete ao Parlamento escrutinar o trabalho do Governo. E cabe ao Governo responder perante o Parlamento.
Nunca é demais recordar este princípio, para que se possam conter as tentações de governamentalização do Parlamento: seja por parte do Governo, quando tem a maioria absoluta, seja por parte do Parlamento, quando a maioria é relativa.
Por último, mas não menos importante, o Parlamento assume o poder
legislativo.
Não tem apenas o dever de representar os cidadãos, ou de fiscalizar o executivo.
Tem também o poder de legislar. De tomar decisões. De agir. Criar condições para a boa governação de quem tem legitimidade para isso.
Em que cada um assume em plenitude e como contrapartida da liberdade de expressão, especialmente protegida pela Constituição, a responsabilidade do que pensa e do que diz.
O julgamento político de aprovação ou de repúdio pelo discurso político deve ser dado pelo povo, através do voto, em eleições livres, diretas e universais.
Numa democracia liberal saudável e madura, o Parlamento é lugar de debate e de expressão das diferenças.
O Parlamento é também lugar de negociação, de trabalho comum e de consenso. Para produzir legislação e fazer o país avançar.
Esta é a doutrina. Estes são os princípios do
bom parlamentarismo.
Olhemos para a realidade portuguesa.
Nestes 50 anos de democracia, as decisões mais fundamentais do regime passaram pelo Parlamento e foram tomadas por amplo consenso.
Desde logo, a Constituição de 1976, que lançou as bases para o regime democrático.
Na Justiça, o consenso parlamentar permitiu criar o Ministério Público, a Provedoria de Justiça e a arquitetura dos tribunais.
Por consenso, estabeleceram-se os poderes das juntas de freguesia, dos municípios e das regiões autónomas.
Definiu-se a Lei Eleitoral e a Lei dos Referendos.
Abriram-se as eleições autárquicas a movimentos independentes.
Aprovou-se a lei da paridade. Reviu-se o Estatuto dos Deputados.
Aprovou-se a Lei de Bases da Saúde.
A licença de maternidade e paternidade e o alargamento da escolaridade obrigatória.
Por consenso, foi possível avançar nos direitos sociais.
Fez-se a Lei da Liberdade Religiosa.
A Lei de Defesa Nacional e o fim do serviço militar obrigatório.
Tantos e tantos exemplos de decisões marcantes, que foram tomadas por consenso.
Que perduraram no tempo. Sem reversões, nem crispação.
Exemplos de
bom parlamentarismo.
Portugal aderiu à União Europeia com um Presidente da República socialista e um Primeiro-ministro social-democrata.
PS e PSD souberam entender-se para sucessivas revisões constitucionais, que ajudaram o país a convergir com a Europa.
PSD e PS aprovaram juntos o fim do Conselho da Revolução.
Surpreende, estranha-se que hoje, tenham dificuldade em concordar com uma política fiscal a cinco anos.
O país é o mesmo. Os partidos são os mesmos. Mas algo parece ter mudado.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Os partidos não precisam de estar de acordo em tudo. Não devem, aliás.
Seria até estranho que estivessem. Cito de memória uma intervenção recente de Bernard-Henry Lévy, que dizia que, em democracia, não importa apenas o que nos une, mas também o que nos separa. Também as nossas diferenças.
Mas a História da democracia portuguesa também nos mostra que os pactos são possíveis.
Chegar a acordo não é sinónimo de fraqueza.
Negociar não é ser derrotado. Pelo contrário: é um ato de grandeza.
Hoje, celebrizou-se a expressão
jogo político.
Não é por acaso. Muitas vezes, a política parece transformar-se num jogo. Demasiadas vezes, mais para a satisfação das claques deste ou daquele, do que para o interesse dos portugueses em geral.
Mas, na política, o jogo não é um fim em si mesmo. Ganhar não é um fim em si mesmo.
O fim, o propósito, é fazer a diferença. É melhorar o país. É construir algo de novo.
Creio que o país está cansado de uma visão conflitual e estéril da política. Em que o debate ganha apenas uma conotação moral.
Deixamos de dizer que não concordamos com o adversário, e passamos a assumir que ele tem más intenções.
Que está capturado por interesses. Que não é legítimo. Que é pouco ético. Que não se pode conversar com ele.
Gastamos muito tempo a caricaturar as intenções dos adversários, e pouco a construir.
No fundo, a exercitar, no Parlamento, em modos diferentes, a mesma realidade: a
teoria do cancelamento, que é uma aberração em democracia.
O país precisa de quem construa, e não de quem apenas faça da ação política uma arma de destruição do regime, mais ou menos maciça, conforme a dimensão eleitoral.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
A democracia liberal e a liberdade não são um dado adquirido. Estamos a vê-lo na Ucrânia e em tantos outros pontos do mundo.
A democracia liberal tem de ser construída todos os dias. E precisa que todos os moderados se empenhem em construí-la.
O
mau parlamentarismo é o que prefere a trincheira das ideologias, em vez do diálogo razoável.
É o que prefere mais as conferências de imprensa, em vez da mesa de negociações.
É o que aposta na espetacularização das comissões de inquérito e na caricatura dos adversários.
É o que apresenta projetos de lei sectários, escritos com uma linguagem que os outros partidos não podem acompanhar, para depois os acusar de votarem contra.
É o que se interessa mais por quem apresenta uma proposta, do que pelo seu conteúdo.
O
mau parlamentarismo é o que deixou de conseguir discutir reformas estruturais.
Na Justiça. No sistema eleitoral. Nas políticas sociais. Na revisão da Constituição. Ou no regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos.
Porque todos os temas parecem agora ser tabu.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
As lições da História são claras.
Quanto mais crispado o clima, mais paralisado o país.
Quanto mais paralisado o país, menos as pessoas confiam no regime.
Termino, por isso, regressando ao início desta intervenção.
A democracia liberal é o sistema político mais bem-sucedido de sempre.
Como disse recentemente o Senhor Presidente da República,
a pior das democracias é melhor do que a melhor das ditaduras.
Mas isso não quer dizer que a democracia liberal seja perfeita. Precisa, sempre, de ser construída e melhorada.
A democracia precisa do empenho de todos os moderados. Precisa de diálogo.
De acordos nas áreas de soberania e nos temas políticos mais prioritários.
De previsibilidade e estabilidade nas políticas – para bem da sociedade civil e da nossa economia.
Relembro a frase de Miguel Veiga:
A democracia é de uma magnífica fragilidade. Cada um medite de como a cuida, a acarinha e previne para que não se parta, para lamento – aí sim, irreversível – de todos.
Muito obrigado!
Disse.