Crónicas Parlamentares
No dia 20 de agosto de 1975, a Assembleia Constituinte debate na especialidade o texto da Comissão de Direitos e Deveres Fundamentais. Em apreciação está o artigo 2.º da proposta da Comissão1, que determinava a igualdade de todos os cidadãos e o princípio da não discriminação, nomeadamente em função do sexo.
O PCP propõe o aditamento de um artigo, igual ao artigo 25.º do projeto de Constituição que tinha apresentado.
“Artigo 2.º-A
1 - As mulheres têm direitos e deveres iguais aos homens, não podendo ser, por esse motivo, objeto de discriminação em qualquer esfera da vida económica, cultural ou política.
2 - A base da igualdade de direitos e deveres da mulher é a igualdade do direito ao trabalho e a igualdade de salário para trabalho igual.”
Fernanda Patrício (PCP) justifica a introdução deste artigo, como uma resposta à inexistência de igualdade de direitos na prática:
“Este artigo consta no nosso projeto, e não se compreenderia que a Assembleia recusasse este aditamento, visto que é evidente para todos nós que as mulheres trabalhadoras não têm na prática essa igualdade de direitos, que nós teremos por dever considerar nesta Constituinte.”
Maria Helena Carvalho Santos (PS), salientando que o seu partido é o que tem maior representação de mulheres no Hemiciclo, manifesta o seu desacordo relativamente à proposta do PCP, que considera discriminatória:
“Ao consignarem na Constituição a expressão «todos os cidadãos», é bem claro que querem dizer «todas as cidadãs» e «todos os cidadãos», já que, gramaticalmente, se usa o plural masculino. Se a proposta do PC é no sentido de reforçar a igualdade da mulher, então eu lembro-lhe que não foi suficientemente avançada a sua proposta, porque em relação a outras constituições de outros países, em que se consagra o privilégio da mulher em relação a igualdade de circunstâncias.
Nós, no PS, se também não consignámos este princípio no nosso projeto de Constituição, nem o propusemos a este hemiciclo, é porque somos contra os privilégios e os privilegiados.”
Acrescenta ainda que, sendo o problema da igualdade da mulher “um problema social e cultural”, a sua inclusão na Constituição em nada viria, “na prática, alterar as condições sociais, económicas e culturais que afligem ainda muitas das mulheres portuguesas.”
Maria Teresa Vidigal, também do PS, classificaria a proposta de “redundante e paternalista”.
Na discussão na generalidade do Título I (Princípios gerais) da Comissão de Direitos e Deveres Fundamentais, tinha afirmado que aquele título “não se refere especificamente à mulher, mas sim a todos os cidadãos. Achamos correto porque nós não queremos nem admitimos discriminações ou privilégios. Os casos específicos relativos à maternidade e aleitamento devem ser encarados como direitos, e não como privilégios. (…). Destacar o problema da mulher do contexto global revolucionário é desvirtuar a luta de classes e abrir caminho à luta de sexos.”
Diz ainda:
“A revolução socialista não tem sexo. E porque a revolução é uma conquista de todos os dias, será à mulher, no seu papel de mãe e educadora, que caberá a missão de transmitir a seus filhos os conceitos de socialismo que farão deles os continuadores certos de uma revolução certa”.
Pelo PPD, Maria Amélia Azevedo, concordando quanto “à necessidade de, na Constituição e posteriormente noutras leis, (…) ser dada realmente à mulher o lugar que lhe compete na sociedade socialista que nós estamos a construir”, considera o aditamento redundante, uma vez que o princípio da não discriminação em razão do sexo já estava expresso no anterior artigo.
O debate terá provocado risos na Assembleia, denunciados na intervenção de Vital Moreira (PCP), que argumenta pelo aditamento, referindo que o princípio da igualdade da mulher aparece em muitas Constituições:
“Como não considero, ao contrário de alguns Deputados que estão a rir-se, que isto é um assunto de mulheres (risos) – aparentemente os ridentes consideram – devo dizer, para responder ao argumento que aqui foi produzido, e por isso é que estou a falar, de que seria redundante consagrar uma discriminação positiva a favor das mulheres, quando já está no artigo anterior considerado a igualdade e a não discriminação em razão do sexo, devo dizer que esta norma especial, a respeito da igualdade dos direitos da mulher aparece imediatamente a seguir ao artigo sobre a igualdade de direitos em muitas Constituições, nomeadamente em todas ou quase todas as Constituições progressistas, socialistas ou não.”
Afirmando que se trata de um assunto “de todos nós”, José Luís Nunes (PS), considera “perigoso consagrar essa teoria de que efetivamente a igualdade de salário e a igualdade de trabalho seriam condições fundamentais, quase decisivas, no estabelecimento da igualdade da mulher”.
Alda Nogueira (PCP) volta a referir os risos no Hemiciclo a propósito do debate sobre a igualdade da mulher:
“Se outros motivos não houvesse para ser inserida na Constituição que estamos aqui a elaborar, este aditamento proposto pelo PCP, bastavam os risos que aqui soaram para o justificar.”
Respondendo a José Luís Nunes, concorda com a afirmação em como inserir o princípio da igualdade salarial da mulher não basta, mas considera que se “essa disposição não for inserida se podem abrir portas para a continuação de uma superexploração.”
Após a votação que ditou a rejeição da proposta do PCP2, os partidos políticos apresentaram declarações de voto, reforçando os argumentos anteriormente apresentados.
[1] “Artigo 2.º | 1 - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2 - Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado ou privado de qualquer direito em razão do sexo, ascendência, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.”
[2] O n.º 1 foi rejeitado, com 33 votos a favor e 101 votos contra, sendo os restantes abstenções. O n.º 2 foi rejeitado, com 33 votos a favor, nenhuma abstenção e os restantes votos contra.
Na
sessão de 29 de novembro de 1972,
Miller Guerra presta homenagem ao antigo parlamentar José Guilherme de Melo e Castro
[1], destacando as suas qualidades como político, o seu papel crítico das políticas governativas na área da saúde e assistência social e o seu desalento com a fase final da governação de Salazar.
“Era seu costume dividir o regime salazarista em três períodos: o primeiro, que ele hiperbolicamente chamava heroico, ia até à guerra de Espanha; o segundo, de consolidação, até à guerra mundial; o terceiro, denominava-o de estagnação (…).
Eis por que saudou a mudança do Governo em 1968, que ele esperava fosse também do Regime ou, pelo menos, que preparasse as condições para isso. O seu desejo era que uma vida nova começasse, uma vida política europeia, como ele dizia.
(…) Ao marasmo político sucedeu - por bem pouco tempo, infelizmente - o fervilhar das iniciativas em torno da ideia nuclear de liberalização.”
O Deputado Casal-Ribeiro interrompe para lamentar que uma circunstância de luto seja ocasião para uma manifestação contra o regime e a ausência de liberdade.
O parlamentar responde às críticas de Miller Guerra, argumentando que a circulação do livro Dinossauro Excelentíssimo prova que há liberdade em Portugal. Da autoria de José Cardoso Pires, com ilustrações de João Abel Manta, o Dinossauro é um retrato satírico da figura de Salazar e do regime autoritário do Estado Novo. Diz Casal-Ribeiro:
“V. Exa. quer mais liberdade do que aquela que nós vivemos neste momento, quando se permite, por exemplo, a saída de um livro ignóbil chamado Dinossauro Excelentíssimo?”
Segue-se uma acesa troca de palavras entre os dois Deputados, em que é retomado o tema da liberdade de expressão e da censura:
Miller Guerra: - Ora, então vamos lá, Sr. Casal-Ribeiro. O senhor falou em liberdade, não foi?
Casal-Ribeiro: - Pois foi.
Miller Guerra: - E lamentou que um livro chamado Dinossauro tenha circulado, não é verdade?
Casal-Ribeiro: - É, é!
Miller Guerra: - Eu por mim, tomara que houvesse muitos Dinossauros e muitos livros que circulassem livremente, que o espírito português não estivesse amordaçado como tem sido há tanto tempo com uma censura que tem, inclusivamente, apreendido livros de Deputados!
Casal-Ribeiro: - Mesmo quando se insulta a memória de uma pessoa que serviu a Nação? V. Exa. acha bem?
Miller Guerra: - Sim, senhor. Em segundo lugar, V. Exa. diz que há muita liberdade.
Casal-Ribeiro: - Eu não disse que havia muita liberdade.
Miller Guerra: - Não? Bom! Então há pouca.
Casal-Ribeiro: - Disse que havia a suficiente para estas publicações.
Miller Guerra: - Então, se há pouca, estamos de acordo.
Casal-Ribeiro: - Não me parece que haja assim tão pouca, mas não haverá, possivelmente, tanta quanta V. Exa. queria.
Miller Guerra: - É verdade. E também não há tão pouca como V. Exa. desejava.
Casal-Ribeiro: - V. Exa. ainda se há de arrepender, tanto como eu, das liberdades que por aí andam.
José Cardoso Pires relata mais tarde este episódio[2], dizendo que esta sessão deixou a Censura de “mãos atadas”, pois “já não podia apreender o livro que o Deputado salazarista tinha citado estupidamente como demonstração da liberdade do regime, e, menos ainda, promover a prisão do autor”.
[1] José Guilherme de Melo e Castro (1914-05 / 1972-09-27) foi Deputado à Assembleia Nacional entre as V e a X Legislaturas, pela União Nacional. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, exerceu entre 1944 e 1947 as funções de Governador Civil de Setúbal e, mais tarde, entre 1954 e 1957, as de Subsecretário de Estado da Assistência Social. Foi ainda Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e Juiz Conselheiro do Tribunal de Contas. Considerado o mais “liberal” dirigente da União Nacional, deve-se-lhe o facto de nas listas de 1969 terem sido eleitos deputados os nomes dos mais significativos membros da “Ala Liberal”.
[2] Cardoso Pires por Cardoso Pires. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991, p. 37.
A Lei do Serviço Militar, publicada a 11 de julho de 1968, previa no artigo 2.º que os cidadãos portugueses do sexo feminino podiam ser admitidos a prestar serviço militar voluntário. Se nesta formulação, o que chama logo a atenção é a forma como são identificadas as mulheres, não deixa de ser surpreendente que, enquanto o regime do Estado Novo mantinha as mulheres numa posição de subalternidade em termos de direitos, designadamente no domínio laboral, as tenha admitido a prestar serviço militar, ainda que em regime de voluntariado.
A iniciativa legislativa que deu origem a esta lei foi elaborada por especialistas dos três estados-maiores das forças armadas e, antes de ser debatida na Assembleia Nacional, foi apreciada na Câmara Corporativa. A discussão na generalidade desta proposta de lei na Assembleia Nacional, inicia-se no dia 9 de janeiro de 1968. O deputado Pinto de Mesquita é o primeiro a intervir e considera que esta disposição permite superar “mais um complexo feminino na aspiração da mulher de se equiparar ao homem no exercício de funções públicas.” O deputado Barbieri Cardoso intervém também sobre esta disposição, referindo que se trata de uma inovação que “embora se afigure trazer incontestáveis vantagens, ou, talvez melhor, comece a ser necessária, não deixa de nos causar hesitação e nos levar a ponderar como e até onde o serviço militar prestado pelas mulheres possa ser conduzido. A Câmara Corporativa, ao apreciar essa inovação no nosso serviço militar, deixou nitidamente transparecer o melindre que nela encontra, emitindo opinião de que certamente não se pretenderá levar a mulher portuguesa a tomar parte em ações militares de campanha, em paridade com os homens. Evidentemente que o pensamento dos autores deste projeto nunca terá sido este, não nos resta a menor dúvida de que nunca lhes passou pela mente levar a mulher portuguesa, ainda que voluntariamente, a um serviço nas forças armadas, tal como na China, em Israel ou no Vietname.”
Poderiam assim as mulheres assumir os serviços que, “por oferecerem nenhuns ou quase nenhuns riscos, colocam os homens que os desempenham em situação moral de grande inferioridade perante aqueles que lutam na frente de batalha, sempre sujeitos às traiçoeiras surpresas das emboscadas, das minas ou das armadilhas.”
Na Legislatura em que se produz este debate, a IX, a Assembleia Nacional conta com quatro deputadas: Custódia Lopes, eleita por Moçambique, Maria Ester Guerne Garcia de Lemos, por Lisboa, Maria de Lourdes Albuquerque, pela Índia, e Sinclética Soares Santos Torres, por Angola. Duas delas intervêm no debate relativo a esta questão, evidenciando posições tão ou mais conservadoras que os oradores que as antecederam, chegando a deputada Maria de Lourdes Albuquerque a referir, no debate realizado a 23 de janeiro de 1968, que “a mulher saiu do lar mais por necessidades materiais do que por um desejo de emancipação ou de distração.” Manifesta discordância com o deputado António Santos da Cunha, que, na sessão de 11 de janeiro, admite a possibilidade do serviço obrigatório para o que designa de “sexo fraco”, depois de ter referido que a mulher “disputa aos homens todos os lugares e posições, abandonou o lar e concorre com os homens na vida pública”. Maria de Lourdes Albuquerque conclui referindo que “nem sou partidária de que ela abandone o lar, mas sou com certeza extremamente favorável a que, sem prejudicar a vida do lar, ela contribua voluntariamente para a defesa e o engrandecimento da Nação.”
A deputada Custódia Lopes intervém, na mesma sessão:
“Não somos feministas a ponto de aceitar o exagerado conceito de que a mulher é igual ao homem e que, portanto, lhe cabem os mesmos direitos e idênticos deveres. (…) Não faltam às mulheres as qualidades que se requerem para os serviços auxiliares das forças armadas, e tarefas há mesmo que mais se adaptam propriamente à índole e psicologia femininas. Estão perfeitamente de acordo com a natureza da mulher os trabalhos de secretaria, dactilografia, os serviços de arquivistas, bibliotecárias, telefonistas, radiotelefonistas, mecanógrafas, contabilistas, os serviços em estabelecimentos fabris, os serviços da manutenção militar, de cozinha, de messes, dos abastecimentos, os trabalhos nas oficinas gerais de fardamento, os serviços de administração de pessoal e outros serviços especializados, dos quais destacamos os serviços de saúde, como médicas, farmacêuticas, analistas, enfermeiras e tantos outros.”
Na realidade, o que pode parecer um passo no caminho da igualdade, não é senão a resposta a uma necessidade de reforço dos meios ao serviço da defesa numa situação de guerra que se prolongava desde 1961, daí que se tenha alargado o serviço militar aos inaptos e às mulheres, porque, como é referido pelo deputado Santos Bessa, na sessão de 16 de janeiro, “muitas são as atividades em que muitos indivíduos podem dar valioso contributo para a defesa da Nação, de harmonia com as necessidades desta e com as aptidões, a idade e o sexo de cada qual.”
Evita-se assim, segundo o mesmo deputado, que se desviem das funções específicas do combate homens válidos para assegurar o funcionamento de serviços que podem ser assegurados por pessoal feminino voluntário. Refere ainda que “embora o sexo feminino venha dia a dia exuberantemente demonstrando quão desajustada lhe está a designação de «fraco», nem por isso nos agradaria vê-lo a envergar fardas e a empunhar armas, como já acontece em alguns países. O arremedo varonil destrói-lhe a graça e a feminilidade que lhe são peculiares.”

08/08/1961 - As cinco primeiras enfermeiras paraquedistas portuguesas da Força Aérea Portuguesa. © Arquivo DN.
Nem sequer a existência de enfermeiras paraquedistas desde 1961, várias vezes mencionadas durante o debate, altera a forma como são percecionadas a mulher e as funções que pode exercer durante a prestação do serviço militar. O Deputado Cutileiro Ferreiro refere-se a elas, dizendo o seguinte:
“Só quem já as viu partir, na fragilidade de um helicóptero, rumo ao desconhecido, poderá compreender o que existe de grande e nobre na sua missão. Custa-me a compreendê-las, mas admiro-as. Não as entendo, mas respeito-as.”
A proposta de lei sofre poucas alterações, tendo o artigo 2.º sido aprovado com a redação proposta.
A participação de Portugal na I Grande Guerra (1914-1918) agravou de forma severa as condições de vida da população, provocando a escassez e as dificuldades de abastecimento de géneros alimentares, nomeadamente do pão.
A 22 de fevereiro de 1917, era publicado um decreto que pretendia responder à crise na distribuição de cereais panificáveis no país, autorizando o Governo a requisitar a farinha existente nas moagens de Lisboa. No dia seguinte, a Portaria n.º 887 determinava que em Lisboa apenas se podia fabricar um único tipo de pão com farinhas de trigo e de milho, em parte iguais. Mais tarde, seria ainda proibido o fabrico de pastéis e bolos na capital.
O Século Cómico, de 19 de março de 1917, refere a passividade do povo perante o “pão-broa igualitário” ou “pão-pedra”:
“Berrámos a princípio (…) fizemos ao princípio as caretas que o caso requeria; custou-nos a triturar o primeiro quilograma da pétrea mistura; vomitámos dois ou três dias – mas acabámos pela resignação”.
Hemeroteca Digital.
No entanto, os protestos contra o “pão igualitário” e a falta de qualidade na sua confeção tiveram eco no Parlamento.
A 17 de abril, o Deputado Alberto da Silveira apresentava o “caso da broa”, denunciando que a população de Lisboa era forçada a comer broa de milho “confessadamente avariado”.
Depois de ser repreendido por insinuar que os ministros se abasteciam de pão de trigo fora de Lisboa, desculpa-os, dizendo que “as senhoras, na sua simplicidade, podiam muito bem pedir aos chauffeurs que trouxessem o pão branco de trigo”, sem o conhecimento dos maridos.
Por fim, confessa ter pedido a uma pessoa amiga que lhe trouxesse pão de Algés, o que acha natural, pois não compreende que “os estômagos dos indivíduos de fora de Lisboa tenham mais direitos” do que o dele.
A crise dos abastecimentos seria agravada nos meses seguintes e culminaria na Revolta da Batata, em maio de 1917, com assaltos populares a mercearias, padarias e outros estabelecimentos comerciais da região de Lisboa.
Na origem dos incidentes terá estado o aumento súbito do preço da batata, alimento muito procurado pelas classes mais desfavorecidas, devido à escassez de pão.
Os tumultos, reprimidos pelas forças da autoridade, resultaram em cerca de 500 presos, a maioria operários, e 40 mortos.
Em 1914, as associações comerciais e industriais de norte a sul, representando a maior parte das forças económicas do país, pedem ao Senado a suspensão do decreto n.º 224, de 17 de novembro de 1913, que determina várias medidas de fomento para a província de Angola, alegando que as disposições desse diploma teriam por consequência inevitável a “desnacionalização da província de Angola e põem em risco desde já os interesses industriais e comerciais da metrópole nas suas relações com aquela colónia.”
O parecer relativo a este pedido, que conclui propondo a suspensão do decreto, é sujeito a ampla discussão, que se inicia a 2 de março de 1914.
O Senador Bernardino Roque é o primeiro a intervir no debate sobre o parecer e considera que “hoje não se fazem conquistas coloniais pelas armas. Essa forma de conquista passou, o meio é mais pacífico e proveitoso. As conquistas hoje fazem-se por processos económicos. Se a província de Angola sofrer a influência económica da Alemanha, poderemos nós ficar com o domínio político, que só traz despesas; mas a Alemanha ficará com o domínio económico que traz o proveito sem os encargos da posse política.”
Na reunião do Senado de 6 de março, prosseguindo o debate sobre o parecer, o Senador Bernardino Roque reitera a sua oposição ao decreto:
“Facilitem-se ao estrangeiro todos os meios para a sua expansão comercial, mas não nos prejudicando a nós.”
Na Sessão seguinte, a 9 de março de 1914, o Senador Pedro Martins faz uma intervenção sobre o “convénio, entendimento, ou como melhor deva chamar-se-lhe entre a Inglaterra e a Alemanha, sobre a partilha entre elas de Angola e Moçambique, (que) corre há anos as colunas da imprensa estrangeira e nacional”.
O Governo responde pela voz de Bernardino Machado, então Presidente do Ministério, Ministro do Interior e, interino, dos Negócios Estrangeiros:
“O que é necessário é que nós, certos da amizade da Alemanha e da Inglaterra, façamos tudo para consolidar os laços, que nos ligam a essas duas grandes nações, e, se temos grandes deveres a cumprir perante o mundo, é necessário cooperar com elas na civilização colonial.
Todos estamos dispostos a cumprir esse nosso dever e a prova foi a aceitação unânime que o Senado deu à proposta do Governo para o governador de Moçambique.

“O Thalassa”, 20 de março de 1914, Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Isso quer dizer que todos estamos dispostos a unanimemente cooperar no desenvolvimento da civilização colonial.”
O Senador Cupertino Ribeiro intervém, citando a intervenção precedente e referindo que o que deseja é que “as nossas colónias sejam colonizadas por portugueses, que os hábitos que lhe imprimirmos sejam bem portugueses”. Prossegue, lendo uma notícia, que não é transcrita no Diário das Sessões, e conclui dizendo “como se vê, a questão é séria e nós vemos que agentes de toda a ordem se introduzem nas nossas colónias, fazendo propaganda terrível contra a nossa fraqueza e falta de energia para as manter. Devemos fazer ver que isto não é assim. Mas pelo caminho que vamos seguindo, receio que sejam fundados os receios e eles se traduzam em factos graves.”
É então que o Senador Nunes da Mata pede autorização ao Presidente para relatar um facto curioso e instrutivo, que presenciou na estrada que vai de Azeitão à Arrábida, em que foram protagonistas dois mesquinhos escaravelhos:
“Um pequeno escaravelho fazia rolar na estrada uma bola de excremento, que contente levava para o seu ninho, a fim de dentro dela depor os seus ovos, quando um outro escaravelho lhe saiu ao encontro, a disputar-lhe o, para ele, precioso fardo.
O dono deste subiu acima dele, e, empurrando o inimigo com as patas e serrilha, atirou-o de costas, fugindo em seguida e empurrando precipitadamente a sua querida bola.
Mas o outro escaravelho não desistiu, e voltou ao ataque mais vezes, repetindo- -se os combates anteriores.
Por último, o dono da bola, vendo que não podia defender-se do pertinaz inimigo, depois de o repelir com energia, dirige com a sua serrilha um golpe brusco contra a sua bola, divide-a ao meio, e toma conta de metade, deixando a outra metade ao seu contendor.”
Remata a história dizendo:
“Deixo, Sr. Presidente, ao Sr. Cupertino Ribeiro e ao Sr. Bernardino Roque o cuidado de aplicar ao assunto a lição de boa prudência dada pelo atilado escaravelho.”
No início do século XX, o direito ao descanso semanal era uma das causas republicanas, mas foi um deputado monárquico que, em 1907, apresentou uma iniciativa nesse sentido, no entendimento de que “aqueles que mais descansam são também aqueles que mais trabalham”.
Na sessão de 1 de fevereiro de 1907, o Deputado Carlos Lopes de Almeida apresentava o projeto de lei que determinava, com algumas exceções, o seguinte:
“O descanso é semanal;
É decretado em favor dos empregados da indústria e do comércio;
Esse descanso é de 24 horas consecutivas;
É simultâneo para os empregados de uma mesma empresa;
O dia a ele destinado é o domingo.”
O republicano António José de Almeida usa da palavra sobre esta matéria, começando por atribuir o agravamento do seu ataque de influenza “à inqualificável violência que o Governo praticou obrigando-nos, na última sessão, a estar enregelados nesta casa até altas horas da noite.”

Caricatura de António José de Almeida, da autoria de Sanches de Castro, 1910, Arquivo Histórico Parlamentar.
Justifica ainda o facto de não ter apresentado um projeto de lei sobre esta reivindicação republicana, por saber “que o que sai dos Deputados republicanos leva em si próprio um fermento de morte.”
Associando-se à iniciativa apresentada pelo deputado monárquico, António José de Almeida faz, no entanto, algumas considerações e apresenta algumas propostas de alteração.
Em primeiro lugar, defende a extensão da lei aos territórios ultramarinos, pois “em África, mais do que em parte nenhuma, é preciso poupar o organismo de quem trabalha, dando-lhe folgas apropositadas e ensejos de compensação”, assim como a sua aplicação também aos trabalhadores de raça negra.
António José de Almeida considera que as pastelarias e as confeitarias devem fechar ao domingo, pois “não há razão para conservar abertos esses estabelecimentos que não são de géneros essenciais à vida”.
No entanto, as lojas de fotografias devem ter permissão para abrir ao domingo, exceto as fotografias de luxo, pois “a sua clientela de gente endinheirada e de ociosos desocupados, pode muito bem fotografar-se aos dias de semana.”
Mas as pequenas casas devem abrir, pois “o caixeiro, o operário, o pequeno empregado” só se pode fotografar ao domingo e, entende o Deputado republicano, a “permuta de fotografias é um dos mais poderosos elementos de cordialidade humana e uma das melhores maneiras de radicar nas sociedades o espírito de fraternidade”.
Quanto às fábricas de gelo podem estar fechadas ao domingo, devendo ser permitida a venda de gelo no dia de descanso semanal, por se tratar de um artigo de primeira necessidade.
Mas são as barbearias a ocupar grande parte do discurso de António José de Almeida, consideradas “um grande elemento de convívio social, visto o contacto permanente em que se encontra com toda a gente, tornando-se assim um poderoso fator na comunicação das ideias”. As lojas de barbeiro devem ter permissão para abrir ao domingo, pois os operários saem tarde das fábricas ao sábado e entram cedo à segunda: “Quando têm eles tempo de fazer a sua toilette capilar? Só ao domingo.”
Refere ainda que em Lisboa há duas correntes a este respeito, com os “barbeiros dos bairros ricos” a quererem fechar e os outros a quererem transferir o dia de descanso para segunda-feira.
António José de Almeida considera que se pode conciliar as duas posições, pois "na classe dos barbeiros o patrão é uma entidade pouco opressiva (…) naquela indústria não há capitalismo. Patrão e oficiais, todos trabalham no mesmo pé de igualdade quase. Sendo uma “classe inteligente”, pode resolver o assunto, “com a condição de haver uniformidade para cada uma das terras”.
Carlos Lopes de Almeida volta a usar da palavra para defender medidas que complementem o descanso semanal, como a criação de jardins operários, com o objetivo de afastar os trabalhadores “das tabernas, das casas de jogo e de prostituição, onde eles vão buscar causa, não só para o seu definhamento, mas também para o definhamento dos seus descendentes”.
No dia 8 de agosto de 1907 seria publicado o decreto sobre o descanso semanal.
Os cordões sanitários, as vacinas, a falta de vacinas, a sua obrigatoriedade ou mesmo os efeitos nefastos das mesmas têm sido temas recorrentes no atual debate parlamentar. Mas se há quem pense que o debate sobre estas questões é exclusivo do período que vivemos, devido à pandemia causada pelo coronavírus, desengane-se. Dúvidas idênticas surgiram ao longo da nossa história parlamentar, associadas ou não a situações epidémicas.
No final do século XIX, a sequência de epidemias e o número de mortes associadas, causadas sobretudo pela cólera, varíola, febre amarela e peste bubónica, obrigaram à adoção de medidas de saúde pública, algumas das quais objeto de grande contestação, como foi o caso do cerco sanitário ao longo da fronteira com Espanha (1885) e mais tarde o cerco sanitário ao Porto (1899) ou o isolamento em lazareto, e trouxeram a classe médica, a investigação em saúde e as medidas de higiene e prevenção para a esfera pública.
Como é óbvio, nas câmaras parlamentares ressoavam e ampliavam-se os ecos deste debate que ocorria na sociedade, incidindo sobre a eficácia das medidas adotadas e os avanços científicos, incluindo as vacinas e as consequências económicas e sociais dos cordões sanitários.
A
16 de janeiro de 1885, aquando do cerco sanitário ao longo da fronteira devido à epidemia de cólera que grassava em Espanha, na Câmara dos Deputados da Nação Portuguesa, é dado conhecimento da situação vivida pelos pescadores de Caminha, concluindo o Deputado Teixeira de Sampaio a sua intervenção da seguinte forma:
“Se o governo continuar a deixar permanecer ali o cordão sanitário, segue-se que os pescadores portugueses estão inibidos de auferir os meios para a sua sustentação, e então será difícil a manutenção da ordem porque
a fome não tem lei.”
A eficácia deste meio também era questionada:
“(…) não por meio de cordões sanitários, porque se tem visto que a cólera, zomba de tais meios” afirmava o Deputado Chamiço, a
8 de maio de 1855.
Mais tarde, a
8 de março de 1900, o cerco sanitário ao Porto, devido à epidemia de peste, suscita um acalorado debate, contrapondo-se à decisão do Governo os pareceres emitidos pela junta consultiva de saúde do reino:
"Torna-se indispensável isolar o Porto do resto do país, não pelo isolamento absoluto e bárbaro, que seria a negação dos princípios da ciência em matéria de saúde pública, mas pela restrição e regulamentação das comunicações, de modo a assegurar por sólidas garantias que as pessoas ou coisas, saídas da cidade infecta, não vão levar a outros lugares indemnes os germes morbígenos.
O isolamento absoluto é a morte social, o sequestro de todo o comércio humano, a tirania do egoísmo. A junta não propõe tal exagero."

“23 de agosto de 1899: Decreto do Ministério do Reino interrompendo a liberdade incondicional das relações do Porto com o resto do reino por meio de um cordão sanitário, enquanto naquela cidade durar a epidemia da peste bubónica.
Apesar deste parecer e de outro, no mesmo sentido, emitido por uma comissão de professores constituída por decreto real para, no Porto, estudar a epidemia, o Governo proíbe a saída de passageiros, bagagens e mercadorias do Porto. O cerco haveria de durar quatro meses.
A vacinação, então descoberta recente de Pasteur, entra igualmente no debate parlamentar. A
16 de junho de 1885, na Câmara dos Pares do Reino, o Par do Reino Tomás de Carvalho responde à questão suscitada pelo Visconde de Moreira de Rei sobre a não indicação pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa de qualquer dos seus membros para integrar a comissão que foi a Espanha estudar o sistema de profilaxia da cólera
(cholera morbus) aplicada pelo Dr. Ferran, ao contrário das escolas de Coimbra e do Porto.
Defende então Tomás de Carvalho, que era também diretor da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, que esta conhecia pelos jornais científicos e políticos os trabalhos do Dr. Ferran pelo que não precisavam de “mandar ninguém para saber o que de ninguém era ignorado”.
De seguida coloca em causa os trabalhos do Dr. Ferran, referindo que em medicina, a ideia de praticar a inoculação das moléstias contagiosas é velha e muito antiga:
“Mas foi principalmente nestes nossos tempos que Pasteur, como todos sabem, lhe imprimiu um caracter científico. Foi ele quem fez conhecer com evidência onde residia a contagiosidade das moléstias que têm este caráter. O Dr. Ferran é um discípulo dele; e prossegue nas suas investigações, acerca do microscópico vegetal, que multiplicado aos milhares, dizem produzir a cólera. É este quase invisível vegetal, este bacilo, a causa, a origem primária da doença.
Se houvesse um meio de inocular este vírus de maneira a produzir naquela moléstia contagiosa o mesmo que já nós conhecemos relativamente à varíola, evidentemente tinha caminhado e progredido por um lado a medicina, e por outro tinha-se realizado um grande benefício à humanidade.”
Prossegue desmentindo notícias que corriam segundo as quais as corporações científicas de Espanha teriam dado assentimento incondicional às inoculações ou ainda que o governo francês teria enviado emissários seus para estudar os trabalhos do Dr. Ferran. Mais, cita uma fonte que teria desmentido notícias publicadas nos jornais daquele mesmo dia, segundo as quais Pasteur e dois dos seus discípulos se dirigiam a Espanha. Segundo esclarece, Pasteur ter-se-ia limitado a escrever uma carta ao Dr. Ferran “elogiando o trabalho realizado e propiciando a profilaxia que ele confiava obter da vacina, mas reservando a sua opinião para quando os factos tivessem efetivamente demonstrado que a vacina tem os efeitos benéficos” que ele lhe atribuía.
Na mesma intervenção, relata que dias antes teria sido intercetado pelo governo um líquido trazido por um médico espanhol, que dizia que era composto e manipulado com os mesmos ingredientes e de igual maneira ao do Dr. Ferran e que se propunha aplicar em Lisboa a vacinação colérica. Este, contudo, teria dito que o médico não era seu discípulo e nem sequer o conhecia.
Tomás de Carvalho alerta ainda para os riscos de a vacina desencadear uma doença similar à que se propunha evitar, no caso, desencadearia uma colerina, o que tornava arriscada a vacinação em regiões não afetadas pela doença. Refere ainda que, embora se tivessem vacinado cem, mil, duas mil pessoas, não provava que os indivíduos inoculados estivessem completamente indemnes ou imunes e ao abrigo do contágio, pois pelas declarações do Dr. Ferran sabia-se que ele julgava necessária segunda vacinação e talvez terceira, pelo que não imaginava quantas inoculações seriam precisas para que aquele meio preservativo pudesse ser eficaz.
O que surpreende nestas intervenções é a permanência ou atualidade de algumas das medidas adotadas no final do século XIX, em situação de epidemia, bem como as questões suscitadas perante as medidas aplicadas pelo poder político e as dúvidas relativas aos supostos avanços científicos, o que se revelou, no caso, justificado.
A história que aqui se reproduz consta das atas da sessão de 14 de outubro de 1822 das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, conhecidas como Cortes Constituintes.
Estas Cortes, fruto da Revolução Liberal de 1820, foram o primeiro parlamento português eleito. Os trabalhos decorreram entre 24 de janeiro de 1821 e 4 de novembro de 1822, no Palácio das Necessidades, em Lisboa.
A Constituição de 1822 foi aprovada a 23 de setembro de 1822. Durante o período em que as Cortes estiveram em funcionamento, os deputados constituintes debateram e aprovaram outras leis, que decorriam naturalmente do texto constitucional.
Temos de recuar até àquela época e lembrar que só então ficou consagrada a divisão tripartida dos poderes (legislativo, executivo e judicial) e foi extinto o Tribunal da Inquisição1. Por isso, os deputados consideraram a reforma da organização judiciária uma das principais prioridades, embora, por razões políticas, não tenha chegado a concretizar-se de imediato.
Importa ainda recordar que, apesar de Portugal ter sido pioneiro a abolir a pena de morte para crimes civis, isso só aconteceria anos mais tarde, em 1867. Contudo, alguns deputados abolicionistas empenharam-se então na elaboração de legislação mais humanitária, menos cruel, envolvendo até a alteração das expressões utilizadas2, o momento da aplicação da pena e a competência para condenar.
E é assim que no debate dos artigos 86.º e 87.º do “Projeto de decreto de criação das nossas Relações”, na sessão de 14 de outubro de 1822, o Deputado Peixoto considerou insuprível, principalmente em caso de morte, o exame do corpo de delito. E justificou a sua posição mencionando erros havidos:
“(…) aqui mesmo na suplicação aconteceu julgarem uma morte, em que não tinha havido corpo de delito; queixou-se a mulher do condenado à Rainha a Sra. D. Maria I, afirmando que o facto era falso; e que o suposto assassinado era vivo; mandou-se informar o juiz da culpa, o qual novamente afirmou, que pelos autos se provava, sem deixar dúvida, a existência do delito; e quando a sentença estava para cumprir-se, apareceu o suposto assassinado, que estava vivo, e são.”
Apesar destas observações e da discordância igualmente manifestada pelo Deputado Borges Carneiro, os artigos em causa foram aprovados sem considerar o exame do corpo de delito.
1 - A abolição do Tribunal do Santo Ofício de Inquisição foi aprovada na sessão de 24 de março de 1821.
2 - “Observarei em segundo lugar que a expressão morte natural, se não deve mais conservar: é tempo de se desterrarem a frases inexatas que conspurcam a jurisprudência. Morte natural é a de um homem muito velho a quem abandona a vitalidade, e a natureza; aquela morte de que aqui se trata é muito artificial.” Borges Carneiro, sessão de 15 de outubro de 1822.
A história que aqui se reproduz consta das atas da sessão de 14 de outubro de 1822 das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, conhecidas como Cortes Constituintes.
Estas Cortes, fruto da Revolução Liberal de 1820, foram o primeiro parlamento português eleito. Os trabalhos decorreram entre 24 de janeiro de 1821 e 4 de novembro de 1822, no Palácio das Necessidades, em Lisboa. A Constituição de 1822 foi aprovada a 23 de setembro de 1822. Durante o período em que as Cortes estiveram em funcionamento, os deputados constituintes debateram e aprovaram outras leis, que decorriam naturalmente do texto constitucional.
Temos de recuar até àquela época e lembrar que só então ficou consagrada a divisão tripartida dos poderes (legislativo, executivo e judicial) e foi extinto o Tribunal da Inquisição(1). Por isso, os deputados consideraram a reforma da organização judiciária uma das principais prioridades, embora, por razões políticas, não tenha chegado a concretizar-se de imediato.
Importa ainda recordar que, apesar de Portugal ter sido pioneiro a abolir a pena de morte para crimes civis, isso só aconteceria anos mais tarde, em 1867. Contudo, alguns deputados abolicionistas empenharam-se então na elaboração de legislação mais humanitária, menos cruel, envolvendo até a alteração das expressões utilizadas
(2), o momento da aplicação da pena e a competência para condenar.
E é assim que no debate dos artigos 86.º e 87.º do “Projeto de decreto de criação das nossas Relações”, na sessão de 14 de outubro de 1822, o Deputado Peixoto considerou insuprível, principalmente em caso de morte, o exame do corpo de delito. E justificou a sua posição mencionando erros havidos:
“(…) aqui mesmo na suplicação aconteceu julgarem uma morte, em que não tinha havido corpo de delito; queixou-se a mulher do condenado à Rainha a Sra. D. Maria I, afirmando que o facto era falso; e que o suposto assassinado era vivo; mandou-se informar o juiz da culpa, o qual novamente afirmou, que pelos autos se provava, sem deixar dúvida, a existência do delito; e quando a sentença estava para cumprir-se, apareceu o suposto assassinado, que estava vivo, e são.”
Apesar destas observações e da discordância igualmente manifestada pelo Deputado Borges Carneiro, os artigos em causa foram aprovados sem considerar o exame do corpo de delito.
(1) A abolição do Tribunal do Santo Ofício de Inquisição foi aprovada na sessão de 24 de março de 1821.
(2) “Observarei em segundo lugar que a expressão morte natural, se não deve mais conservar: é tempo de se desterrarem a frases inexatas que conspurcam a jurisprudência. Morte natural é a de um homem muito velho a quem abandona a vitalidade, e a natureza; aquela morte de que aqui se trata é muito artificial.” Borges Carneiro, sessão de 15 de outubro de 1822.
As Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, às quais competia a elaboração e aprovação da que viria a ser a Constituição Portuguesa de 1822, iniciaram funções logo depois da eleição, realizada em dezembro de 1820.
Durante o seu mandato, os Deputados tiveram de se ocupar de outras questões, como as relativas ao funcionamento das Cortes, o diagnóstico do estado público do país e a regulação ou extinção de instituições anacrónicas face à nova ordem política.
Começaram, contudo, por elaborar e aprovar as Bases da Constituição, a 9 de março de 1821, tendo, no dia 29 desse mesmo mês, realizado a cerimónia de juramento por parte de todas as autoridades e por todo o país. “A fórmula «Juro aos Santos Evangelhos aderir e obedecer às bases da Constituição Política deste Reino que as Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa reconhecem, e mandam provisoriamente guardar como Constituição» seria recitada nos paços do concelho, juntando-se o clero paroquial às vereações.”1
Dois dias depois, a 31 de março, a sessão começou, como era habitual, com a leitura e aprovação da ata da reunião anterior, seguindo-se a leitura de expediente que, nesse dia, consistiu em ofícios de membros do Governo, pareceres das comissões e cartas de felicitação e prestação de homenagem às Cortes.
Depois da aprovação do decreto para abolição da Inquisição, passou-se à discussão do articulado do Decreto sobre Bens Nacionais e amortização da Dívida Pública. A propósito do artigo 4.º, que determinava que para amortização da dívida se aplicasse o rendimento dos Benefícios, Ofícios e Dignidades da Igreja Patriarcal, o Deputado Borges Carneiro faz uma longa intervenção na qual procura justificar esta medida. Começa por referir que não há uma Patriarcal em Espanha, França, Alemanha ou Rússia, países muito maiores, contudo, existe em Portugal e tem um rendimento anual de 230 contos de réis, que consiste nos terços dos dízimos dos Bispados, foros e rendas que recebe das Províncias. Defende que os dízimos não podem ser arrebatados para se fundar na capital um “estabelecimento vaidoso em que sobre as ruínas dos exauridos provincianos nutrissem os eclesiásticos o fausto e a pompa mundana a que haviam renunciado no batismo e ordenação”.
Para evidenciar a riqueza da Patriarcal cita os preços dos chapéus: “só o seu chapéu com os outros 3 chapéus Cardinalícios vindos de Roma desde o ano de 1755 custam anualmente a Portugal 3 contos de réis, ao todo até o presente ano 123 contos e 600 mil réis; eu não dava por estes 4 chapéus 123 réis!”
Não retirando validade, nem pertinência à exposição, percebemos, quando conclui, que o destinatário deste discurso, é não apenas a Patriarcal, mas também o Cardeal Patriarca, D. Carlos da Cunha e Meneses, que “recusou reconhecer as Bases da nossa Constituição, a obra dos Ilustres Representantes da Nação Portuguesa, sancionada pelo voto geral dela.”
O Cardeal Patriarca tinha jurado com restrições os artigos 10.º – por requerer censura prévia eclesiástica em matérias religiosas – e 17.º – por exigir a formulação da religião católica como única dos portugueses e “sem alteração ou mudança alguma em seus dogmas, direitos e prerrogativas”. 1 2
Estudo para a pintura de Veloso Salgado alusiva às Cortes Constituintes de 1821.
Apesar de estar em apreciação o Decreto sobre Bens Nacionais e amortização da Dívida Pública, após a intervenção do Deputado Borges Carneiro passou-se de imediato ao debate desta questão.
O Deputado Moura intervém referindo que “há um homem, há um Português, que declara que não jura observância ao que a Nação tem declarado como Lei fundamental. Isto é crime, ou não? Se é crime, é preciso que este crime se analise, é preciso que se castigue este crime.”
O Deputado Fernandes Tomás informa que sabe que a Regência determinou que o Cardeal Patriarca fosse para o Bussaco acompanhado de uma escolta de cavalaria, mas considera que ele cometeu um delito e que deverá ser julgado como um delinquente.
Este assunto passa à ordem do dia e decidiu-se chamar o Ministro dos Negócios do Reino para se apresentar perante o Congresso com os papéis, ordens e informações relativas ao Cardeal Patriarca.
Manuel Fernandes Tomás. Estudo para a pintura de Veloso Salgado alusiva às Cortes Constituintes de 1821.
O Deputado Castelo Branco considera que “réu é um infrator da Lei, não o posso considerar como infrator de uma Lei que não abraça, é uma Lei nova; mas por esse facto deixou de ser Cidadão. Por isso o procedimento que acho que deve ter-se com o Cardeal Patriarca é mandá-lo para fora da Sociedade com a segurança precisa.”
O debate prossegue e alonga-se, tendo o Deputado Xavier Monteiro colocado as seguintes questões: se o Congresso decide que deve ser julgado, que Tribunal o poderá julgar e qual a Lei em virtude da qual há de ser julgado.
Alguns Deputados que consideram que o Congresso deve determinar que ele é culpado, outros que ele deve ser julgado e outros que se deve deixar o assunto à Regência ou, ainda, que antes se deveria ouvir o Cardeal Patriarca. Por fim, considera-se que a questão é de grande ponderação, ficando o debate adiado para a sessão seguinte.
Na sessão seguinte, a 2 de abril, depois da leitura da ata, prossegue a discussão, tendo intervindo o Deputado Moura que refere o seguinte: “Aqui não há Lei Civil, ou Criminal, que fosse quebrantada; aqui não há Crime, o caso é todo político; trata-se de saber unicamente qual há de ser o destino que deve ter o Português que se não quer ligar às Leis fundamentais da Sociedade.”
De seguida, o Deputado Pereira do Carmo defende que o Cardeal Patriarca não é criminoso porque entende que usou do direito que lhe assistia e, para o comprovar, pergunta aos outros membros das Cortes:
“Se acaso a futura Constituição consagrasse o despotismo em princípio; desse cabo dos direitos individuais do homem, e do Cidadão; deixasse em pé as velhas instituições, que levaram a Nação às bordas do precipício; julgar-se-iam ligados pelo seu antecipado juramento a aceitar, cumprir, e observar uma tal Constituição?”
Prossegue dizendo que lhe resta mostrar que o Cardeal Patriarca apesar de não ser criminoso, não é Português:
“A demonstração é muito óbvia. Não é Português, porque não aceitou, nem jurou o Contrato Social porque a Nação Portuguesa deseja constituir-se de ora em diante em corpo político. E daqui se segue 1. ° Que o Cardeal Patriarca deve [deixar] o Território Constitucional do Reino Unido, no mais curto espaço de tempo que for possível. 2.° Que deve largar todas as honras, e fortuna que havia recebido da Nação, a quem ele mesmo enjeitou, e a quem trata com tanto desapego.”
O Presidente pôs então a votação, tendo sido aprovadas por ampla maioria, que toda a Autoridade, ou indivíduo que se recusa ao juramento das Bases da Constituição, sem restrição alguma, deixa de ser Cidadão Português, e deve, portanto, sair do Reino.
Pouco tempo depois, o Cardeal foi obrigado a exilar-se em França. Nesse mesmo ano, a 15 de novembro, foi apresentado um projeto de extinção da Patriarcal e a 4 de janeiro de 1822, as Cortes mandaram suspender todo o tipo de pagamento à Patriarcal.
O Cardeal Patriarca não foi o único membro do clero a recusar jurar as Bases da Constituição, embora fosse aquele que teve maior visibilidade. Não deixa de ser curioso o debate em torno desta recusa, ainda que parcial, num quadro jurídico e político novo, e o seu desfecho.
1 - In A hierarquia episcopal e o vintismo, Ana Mouta Faria - Análise Social, vol. XXVII (116-117), 1992 (2. °- 3.°), 285-328
2 - O teor dos artigos era o seguinte:
10.° Quanto porém àquele abuso, que se pode fazer desta liberdade em matérias religiosas, fica salva aos Bispos a censura dos escritos publicados sobre dogma e moral, e o Governo auxiliará os mesmos Bispos para serem castigados os culpados.
17.° A sua Religião é a Católica Apostólica Romana.
No dia 10 de dezembro de 1821, as Cortes Constituintes debatem o artigo 121.º do projeto de Constituição, relativo à sucessão do trono no caso de recair sobre uma mulher:
“Se a sucessão cair em fêmea, não terá seu marido parte no governo, nem chamará Rei, senão depois que tiver a Rainha um filho ou filha.”
O Deputado Maldonado defende que, em primeiro lugar, deve ser discutido se a sucessora do trono pode casar sem o consentimento das Cortes:
Pormenor de estudo para a tela Cortes Constituintes de 1821, de Veloso Salgado.
“Julgo que esta questão é importante de se resolver (…) por quanto se a sucessora do trono precisar do consentimento das Cortes para haver de casar, então parece que se lhe dá menos do que se lhe deve dar e se acaso não precisar daquele consentimento parece que se lhe dá mais. Digo, que parece que se lhe dá mais neste caso, porque se lhe dá entrada no governo unicamente por um favor caprichoso, por um favor da natureza; e se lhe dá muito menos, porque se acaso o esposo que escolher a sucessora da coroa não tem recebido da natureza este favor caprichoso, está excluído daquele benefício."
Alves do Rio apresenta uma emenda ao artigo: “Se a sucessão da coroa cair em fêmea, não poderá casar senão com português precedendo aprovação das Cortes.”
Está então lançado o debate sobre a possibilidade de um estrangeiro ocupar o trono de Portugal.
Castelo Branco entende que essa decisão deve ser deixada ao critério das Cortes, que, saberão avaliar “as qualidades precisas para ser marido da sucessora do trono português”, independentemente de ser estrangeiro.
Já o Deputado Sarmento considera que o casamento com um estrangeiro põe em causa a independência e a liberdade do país, constituindo uma ameaça aos costumes e enfraquecendo o “caráter nacional”.
Castelo Branco responde, referindo que o marido da Rainha não pode ter parte no governo, pelo que não se colocam os problemas levantados. A existirem, o Deputado argumenta que também se deveriam proibir os reis de casar com estrangeiras.
O Deputado Macedo contra-argumenta dizendo que, apesar de não poder ter parte no Governo, o príncipe continuará a exercer a sua influência, uma influência muito diferente da que poderia exercer uma princesa estrangeira. Alves do Rio acrescenta ainda que “ainda que o marido da Rainha não tenha parte no governo, é impossível que deixe de causar ciúme aos Portugueses”.
O Deputado Moura não receia essa influência, salientando que o marido da Rainha “nunca se chamará Rei, nem o será, e que a Rainha terá o inteiro exercício do poder executivo, pois o Parlamento detém o poder legislativo, competindo ao Rei executar as leis “coartado (…) por vários modos e estabelecendo diversas garantias”:
“Que perigo há em que um Príncipe estrangeiro venha sentar-se num trono, a que não sobe para governar? Diz-se que os Príncipes farão os costumes da sua nação: há coisa mais fútil que esta e porque as Princesas não hão de trazer do mesmo modo os costumes? Quem terá mais influência: o Rei, se for estrangeiro, ou a Rainha? Consulte cada qual o seu coração e veja se as mulheres têm menos influência nos homens, que os homens nas mulheres: pelo menos a influência será igual. “
Pormenor de estudo para a tela Cortes Constituintes de 1821, de Veloso Salgado.
O Deputado Sarmento menospreza a influência das mulheres nos costumes nacionais, pois apenas poderiam “introduzir a moda de algumas cabeleiras de França” ou determinar “a maneira de se apresentarem as damas na corte com donaires mais compridos ou mais curtos”.
Anes de Carvalho é contrário ao casamento com estrangeiro, utilizando também o argumento da influência que o marido da Rainha pode ter. Defende ainda que “os homens influem mais as mulheres, que as mulheres os homens, porque em razão de sua sensibilidade, e de sua fraqueza, de donde resultam seus vícios, e suas virtudes, elas são mais dominadas pelos homens, que os homens por elas; e daqui vem, que as leis de todas as nações sempre sujeitaram as mulheres aos homens.
Para o Deputado Varela, o maior perigo está no caso em que “o Príncipe não tenha direito algum a exercer a autoridade do governo”:
“Tal Príncipe não pode ser um herói; um Príncipe que se submete a ir à esquerda de uma, mulher, a não ter caráter nenhum representativo, não pode ser um herói. E que viria fazer a Portugal? Viria a fazer raça? Para isto em Portugal há muitos capazes de exercitar os trabalhos de Hércules; e não resultando a este Príncipe estrangeiro mais glória do que a de vir ter filhos a Portugal, seria indecoroso para o reino, e até para ele mesmo tal casamento.”
Outros Deputados não concordam com a emenda apresentada. Correia de Seabra diz mesmo que o casamento com um estrangeiro pode ser útil e conveniente, estando sempre salvaguardada a sua aprovação. Utiliza também o argumento de que, em coerência, deveria ser proibido o casamento dos príncipes com estrangeiras, “porque a influência das mulheres não é de tão pouca consideração como se tem suposto”.
Apesar das vozes contrárias, o artigo viria a ser aprovado com as alterações apresentadas, constando como Artigo 145.º da Constituição de 1822:
“Se a sucessão da Coroa cair em fêmea, não poderá esta casar senão com português, precedendo aprovação das Cortes. O marido não terá parte no Governo e somente se chamará rei depois que tiver da Rainha filho ou filha.”
Na sessão de 4 de agosto de 1821 das Cortes Constituintes, as touradas estiveram em debate.
Borges Carneiro apresentou um projeto de lei para a proibição dos espetáculos tauromáquicos, entendidos como contrários “às luzes do século, e à natureza humana”. Em causa, estava um entretenimento baseado no sofrimento dos animais, criados para servir o homem, mas não para serem martirizados.
“Os homens não devem combater com os brutos, e é horroroso estar martirizando o animal, cravando-lhe farpas, fazendo-lhe mil feridas, e queimando-lhe estas com fogo: tão bárbaro espetáculo não é digno de nós, nem da nossa civilização.”
Também o Deputado Teixeira Girão classifica as touradas como um” bárbaro divertimento”, uma “tolice em expor a vida sem fim útil, sem necessidade, uma “traição em inutilizar aos touros as armas que lhes deu a natureza” e uma “crueldade e cobardia em atormentá-los depois”.
Em sentido contrário, vários Deputados argumentam com a tradição e popularidade do espetáculo, mas também pela existência de outros costumes que agridem os animais, como a caça ou, noutros países as “carreiras de cavalos e o combate dos galos”. Referindo-se ao projeto de lei de Borges Carneiro, Lemos Bettencourt afirma:
“Admira-me, como levado de tão filosóficas tenções, não incluiu no mesmo projeto a proibição da caça, pois sendo todos os animais e aves entes sensitivos, não deviam ser objeto de divertimento do homem; e não devia o caçador matar a ave inocente”.

As Cortes Constituintes de 1820, por Roque Gameiro (in "Quadros da História de Portugal", 1917).
Outros Deputados entendem que a sociedade portuguesa não está ainda preparada para a decisão de extinguir as corridas de touros. Assim pensa Serpa Machado, que defende ainda a diminuição da barbaridade do espetáculo e a abolição dos “touros de morte”:
“Eu não seria de opinião que desde já fossem proibidas as festas de touros, porque ainda não é tempo; é necessário ir preparando os costumes. Entretanto apoio que o projeto vá à discussão, não para se abolir esse espetáculo, senão para diminuir a sua barbaridade. Vamos por ora preparando os costumes, que lá virá tempo em que ele caia por si mesmo.”
Manuel Fernandes Tomás, confessando ser “amigo deste divertimento” e espetador semanal de touradas, refere que não se pode, de repente, transformar o país numa “Nação de filósofos”, sendo necessário preparar a sociedade:
“Para extinguir-se aqui este espetáculo, é preciso que os costumes se vão preparando, querer de repente reduzir uma Nação a Nação de filósofos não me parece correto, nem sensato; este costume há de acabar entre nós, quando se extinguir na Espanha. Eu o declaro francamente, sou amigo deste divertimento; não é por ser valoroso, nem deixar de o ser, nem querer que os outros o sejam, senão porque fui criado com isso. Na teoria sou dos mesmos sentimentos filantrópicos; mas na prática não posso. Confesso a minha fraqueza: vou ver os touros todos os domingos. Eu não pugnarei porque os haja; mas tão pouco me oporei diretamente a que deixe de havê-los."
O projeto de lei de Borges Carneiro para a extinção das touradas seria rejeitado.
No dia 7 de março de 1821, Ângelo Ramon Marti, o “Taquígrafo-Mor das Cortes”, apresenta ao Parlamento uma exposição sobre as causas dos problemas detetados nas atas das sessões das Cortes, nomeadamente na inexatidão dos discursos e na ausência de ordem na sua colocação no Diário.
Pintura de Veloso Salgado representando as Cortes Constituintes de 1821.
O taquígrafo apresenta as seguintes razões para as falhas do Diário das Cortes.
Em primeiro lugar, considera que “o zelo do bem comum”, “as boas intenções dos Representantes da Nação” e “o imenso cabedal de suas ideias” faz às vezes com que os Deputados falem com muita rapidez ou não deixam acabar o discurso de um orador, para lhe responder”.
Assim, a taquigrafia 1 não é capaz de acompanhar o discurso oral, pois “a mão não é composta de articulações da mesma flexibilidade, que as da língua”.
Em segundo lugar, refere a Sala da Biblioteca do Convento das Necessidades como desadequada para a função parlamentar, “sendo uma meia elipse onde estão sentados os senhores Deputados e um retângulo onde a voz se espalha, perdendo-se nos seus ângulos”. Esta configuração impede que os Deputados se consigam ouvir pelo taquígrafo, pelos espetadores e mesmo pelos outros Deputados. Ângelo Ramon Marti justifica assim os lapsos nos discursos: “ninguém pode escrever o que não ouve”.
De seguida, refere outras questões “não menores”, como a falta de pessoal e de condições na Secretaria do Diário, onde “não tem havido mais que um taquígrafo”, com a ajuda de seis discípulos com “ordenados mesquinhos”, doze horas de trabalho e “esperanças tão incertas de melhores”.
O Regulamento da Redação das Atas e dos Discursos das Sessões proposto pelo taquígrafo ao Parlamento tem por base o exemplo de Espanha:
“Doze são os taquígrafos (…) que em Espanha (…) servem na Secretaria do Diário, (…) divididos em três turnos, não só para que descansem dois dias cada turno (coisa indispensável, por que é um trabalho físico-intelectual com que não pode diariamente ninguém, por muito robusto que seja, chegar a resistir um ano), não só por isto, digo, senão por ter tempo para fazer copiar todas as suas notas nestes dois dias de descanso. Há Redatores que assistem, além dos taquígrafos, passam, se é necessário, às mãos dos Deputados, para que as vejam, pois que o mais eloquente Orador não pode deixar de cometer alguns erros de linguagem, coordenação de ideias etc., no fogo da locução.”
Apesar de terem sido admitidos mais taquígrafos, conforme o “regulamento provisório do estabelecimento da redação”, as críticas mantêm-se, de que é exemplo a intervenção do Deputado Rodrigo Ferreira, no dia 10 de junho de 1822:
“Sr. Presidente: A Comissão da Redação de Diário das Cortes vê-se obrigada a declarar ao soberano Congresso que o estabelecimento da taquigrafia marcha muito mal. Há mais de um mês que a Comissão lhe prescreveu a regulação de seus trabalhos, repartindo os taquígrafos todos em quatro turnos, e dando-lhes tempo para aprontarem os extratos de suas notas, com todo o descanso. Apesar disso, alguns dos taquígrafos menores não cumprem suas obrigações, cometendo muitas faltas, tardanças e negligências. Têm sido advertidos e continuam sem emenda. A Comissão está resolvida a castigar os omissos, fazendo descontar-lhes parte de seu ordenado nas folhas do pagamento mensal.”
O Parlamento português abandonou a taquigrafia nos anos 60 do século XX, adotando-se como metodologia a gravação e transcrição integral das sessões plenárias.
1 - A taquigrafia ou estenografia é um sistema muito rápido de escrita com recurso a abreviaturas especiais.
Os Deputados que tomaram assento nas Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa, em janeiro de 1821, prestaram juramento e, depois de ouvirem o Relatório do estado público de Portugal, elaborado por Fernandes Tomás, dedicaram-se, nos meses que se seguiram, à elaboração da Constituição e ao debate de diversos projetos estruturantes visando a reforma do país, como a concessão da amnistia aos presos políticos, a lei da liberdade de imprensa, a reforma judiciária ou a abolição da Inquisição.
Mas entre os trabalhos parlamentares, tiveram também de se ocupar de outras questões mais práticas, como a elaboração de um regimento, a contratação de taquígrafos, a fixação de salários e ajudas de custo, e também dos uniformes que eles e outros usariam.
Reprodução da pintura "O juramento político de El-Rei D. João VI ao chegar a Lisboa de regresso do Brasil, em 1822", de Columbano Bordalo Pinheiro, Arquivo Histórico Parlamentar.
Assim, antes de aprovarem o cerimonial para a receção do Rei D. João VI, no dia 30 de maio de 1821 os Deputados discutem como se irão apresentar no dia da vinda do rei às Cortes. Há quem considere que não deverá haver mais ostentação nesse dia do que no dia da instalação das Cortes:
“O Sr. Pimentel Maldonado - O dia em que El-Rei entrar aqui é dia de grande respeito, e de grande glória, porém não mais respeitável, nem mais glorioso que o dia da instalação das Cortes, e o do juramento das Bases [da Constituição]. Não há, pois, razão para haver etiquetas de acatamento maior; estas sedas, de que se fala, o indicarão, e nos trairão. Sem este vão luxo se verificou em nós a Representação Nacional, sem ele será recebido El-Rei dignissimamente.
(Apoiado, apoiado.)
O Sr. Trigoso - Não se trata de que tal dia seja maior nem menor, trata-se da etiqueta. Toda a Corte que aqui vier se achará vestida de seda, e não parece bem que nós não estejamos vestidos do mesmo modo, com tanto que seja das Fábricas Nacionais.
(…)
O Sr. Freire - Seria melhor determinar um uniforme geral, para o futuro, e então já não havia nada de que tratar acerca disto.
(Apoiado, apoiado.)
O Sr. Soares Franco - Mas este uniforme deveria ser de um modo para o Verão, e de outro para o Inverno.
O Sr. Presidente - Eu creio que aqueles que têm um uniforme que lhes é próprio devem assistir com ele.
O Sr. Braamcamp - A mim me parece que a prática que cada um venha com o seu e que o uniforme que aqui se adotar não seja senão para os que não tenham nenhum.
(…)
O Sr. Presidente - Então fica sendo uniforme dos Deputados, que o não tem, vestido sério das Fábricas Nacionais.
O Sr. Santos - Agora é preciso saber o que é vestido sério?
O Sr. Pimentel Maldonado - Parece-me que vestido sério, e mais sério que este vestido preto que usamos, não pode haver.
O Sr. Presidente - Julgo escusado continuar discussão sobre isto, parece-me que já está bastante indicado.
O Sr. Soares Franco - Mas é necessário saber, de que cor, e de que classe há de ser, para virem todos uniformes.
O Sr. Presidente - Negro de seda no verão e de lã no Inverno.
O Sr. Brito - Eu não apoio a seda, porque não dá mais que constipações; seria melhor de pano. Quase todos os Deputados são valetudinários, e julgando por mim, eu quando visto uma casaca que não seja de pano, já começo a sentir as dores reumáticas.
O Sr. Baeta - Para o que verdadeiramente não acho razão é para que sejam as casacas direitas. Eu não sei que influi na seriedade ter as abas da casaca mais pequenas, ou mais grandes.
(Apoiado, apoiado.)
O Sr. Pereira do Carmo - Vejo tratar esta questão do uniforme com bastante ligeireza, dando-se-lhe muito menos importância do que lhe davam os antigos Povos, e até do que lhe dava um filósofo moderno, Jean-Jacques Rosseau, que nunca foi tachado de servilismo. Diz ele, em alguma parte do seu Contrato Social, que não desprezemos uma certa decoração pública, que seja nobre e decente, porque se não pode crer até que ponto o coração do Povo segue os olhos e quanto lhe impõe a majestade do cerimonial. Isto (acrescenta ele) dá à Autoridade um ar de ordem, que inspira confiança, e desvia as ideias de capricho e fantasia, unidos ao poder arbitrário. Eu sigo inteiramente o parecer do filósofo de Genebra.”
Por fim, decidiu-se que o vestido fosse “o chamado de Corte, ou sério” e para regular este vestuário foi nomeada uma Comissão.


Estudos para a pintura “Cortes Constituintes de 1821”, de Veloso Salgado, 1920.
Mas não só os uniformes que deveriam doravante usar os Deputados das Cortes que foram objeto de debate e decisão, também os dos funcionários da Secretaria das Cortes ou os dos generais foram discutidos. Neste caso, a preocupação centrava-se no seu elevado custo:
“O Sr. Barão de Mollelos - Não posso porém deixar de dizer alguma coisa a respeito dos uniformes dos generais: segundo as ordens, são obrigados a terem grande e pequeno uniforme, ambos custam pouco mais ou menos 500$ réis; falo tão somente de chapéu, farda, colete, e calção ou pantalona. Ora, dar a um brigadeiro 360$ réis por ano, e serem obrigados a despenderem só nesta parte do fardamento 500$ réis, é na verdade muito injusto e contraditório.
Quanto aos ministros e membros do corpo diplomático, as Cortes ordenaram ao Ministro Secretário de Estado dos Negócios do Reino, através de uma Indicação aprovada a 10 de dezembro de 1821, que apresentasse um projeto e um padrão para as fardas. A Indicação considerava que urgia a regulação, “não só porque os empregados se acham a caminho para as diversas cortes, mas porque é tempo de cessar o aparelho faustoso, e custoso de vestiduras impostoras, e que chocam a singeleza, que deve respirar em todas as repartições dum país a que preside a liberdade.”
Mais tarde, a 7 de junho de 1822, a Comissão das artes examina os figurinos para os Conselheiros do Estado, que lhe foram remetidos pelo Deputado Martins Basto, que menciona a incongruência que reside no facto de os Conselheiros não terem vestido próprio, ao contrário de todos os ministros e empregados em funções públicas, referindo “que assim ficam isentos de se conformarem aos caprichos da etiqueta e por conseguinte de fazerem maior despesa”. O parecer da Comissão é debatido:
“O Sr. Sarmento - Sou por isso de parecer que o nosso Conselho de Estado apareça nas funções públicas vestido segundo o costume português. Não sei se esse uniforme que se lhe pretende dar é mais elegante e vistoso, para com ele se agradar às senhoras: todavia como o Conselho é composto de homens de idade avançada, e não de meninos que pretendam agradar, por isso eu digo, que ele deve ser ornado de um exterior de seriedade, para inculcar respeito, e representar, até pelo traje, a importância do seu emprego. Deve por isso aparecer vestido à portuguesa nas funções públicas. E quanto às particulares, os Conselheiros têm 6 mil cruzados para gastarem, mandem para o verão vir sedas de Chacim, e para o inverno veludos de Bragança, e saragoças do Alentejo.”
No final, decidiu-se que os Conselheiros de Estado deveriam ter uniforme e foi aprovado o modelo proposto.
Não será necessário repetir as palavras de Jean-Jacques Rousseau para calcular a importância que o uniforme então tinha, e até a repercussão económica e social, mas parte do prestígio de que gozaram os deputados vintistas, conhecidos como “os casacas de briche”, resultou do facto de terem optado por um traje austero da indústria nacional, tendo o seu exemplo sido seguido por muitos cidadãos.
Os deputados eleitos no final de 1820 juraram1 não apenas fazer a Constituição Política, mas também as reformas e melhoramentos que julgavam necessários. Tratando-se do primeiro Parlamento composto por deputados eleitos, foi necessário começar por organizar os trabalhos, aprovar o Regimento, deliberar sobre as comissões e respetiva composição, determinar os vencimentos e despesas devidas aos deputados e oficiais da Corte e conhecer o estado do país.

As Cortes Constituintes, por Roque Gameiro (in "Quadros da História de Portugal", 1917).
Podemos imaginar a vontade, o empenho e até a pressa de reformar o país destes deputados, eleitos na sequência da Revolução de 1820, cujos discursos são reproduzidos em quase todos os periódicos2 e que recebem diariamente correspondência de cidadãos, felicitando-os ou apresentando propostas ou requerimentos.
O Relatório do estado público de Portugal, de Fernandes Tomás, lido na sessão do dia 5 de fevereiro de 1821, que de alguma forma marca o início dos trabalhos parlamentares, refere, no capítulo relativo ao Governo, o seguinte:
“Senhores! As leis judiciárias, as administrativas, e numa palavra todas merecem a mais circunspecta e sisuda reforma. Sendo tantas, que é impossível sabê-las, ou ao menos ter notícia delas…3
Não é por isso de surpreender que nessa mesma sessão, antes, portanto, da aprovação das Bases da Constituição, tenham sido apresentados diversos projetos de lei sobre estas matérias, designadamente sobre a liberdade de imprensa, a abolição dos tributos vis, a abertura de prisões (amnistia aos presos), a abolição do Tribunal de Inquisição e a limitação do poder da Polícia.
O projeto de abolição do Tribunal de Inquisição é apresentado pelo Deputado Francisco Simões Margiochi que propõe a sua extinção no Reino de Portugal, quase 300 anos depois da sua introdução, como já acontecera nos outros domínios portugueses. Em consequência da extinção, propõe que os seus arquivos sejam remetidos à Sala dos Manuscritos da Biblioteca Pública de Lisboa e que os seus empregados conservem metade dos seus ordenados.
No dia 31 de março de 18214, dia em que é votado e aprovado este projeto de lei, a redação do preâmbulo, que justificava a extinção devido à multiplicidade de tribunais, suscita aceso debate, tendo o Deputado Fernandes Tomás referido o seguinte:
“Não se declare antes razão nenhuma: essa é ofensiva ao decoro, e luzes do século e sentimentos desta Assembleia. Seria ridículo que no Mundo se dissesse que se tinha extinguido a Inquisição porque não se podia sustentar, extingue-se porque não deve existir num país em que há homens livres.”
O texto aprovado tem poucas alterações relativamente ao projeto de lei inicialmente apresentado, sendo que no preâmbulo se refere apenas que é extinta porque a sua existência era contrária ao sistema constitucional, remetendo-se para diploma posterior a fixação dos vencimentos5.
1 - “Juro cumprir fielmente, em execução dos Poderes que me foram dados, as obrigações de Deputado nas Cortes Extraordinárias que vão a fazer a Constituição Politica da Monarquia Portuguesa, e as reformas e melhoramentos, que se julgarem necessários para bem e prosperidade da Nação, mantida a Religião Católica Apostólica Romana, mantido o Trono do Senhor D. João VI, Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil, e Algarves, conservada a Dinastia da Sereníssima Casa de Bragança.”
O juramento foi preparado por uma Comissão composta pelos Deputados Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges e Francisco Soares Franco e foi unanimemente aprovado na sessão preparatória, realizada a 24 de janeiro de 1821.
2 - “O processo de formação do primeiro movimento liberal: a revolução de 1820”, Isabel Nobre Vargues, In História de Portugal, direção de José Mattoso, 5.º volume.
3 - O Relatório encerra da seguinte forma: “Quando um Governo, Senhores, trata os interesses dos povos pelo modo que tendes ouvido, e que desgraçadamente é muito verdadeiro, fazendo, ou consentindo que se façam males tão grandes, ninguém poderá deixar de confessar que ele é um Governo mau: e em tal caso seria bem admirável, que houvesse ainda quem se lembrasse de disputar à Nação o direito de escolher, ou de fazer outro melhor."
4 - Foi publicada no jornal oficial de 5 de abril de 1821.
5 - Esta questão é debatida no dia 18 de junho de 1821, defendendo o Deputado Ferreira Borges que se “conservem os ordenados, mas não com o título de inquisidores, porque esse nome deve ser riscado dos Dicionários”. Os vencimentos, mesmo depois de fixados, são mencionados em vários debates, até pela injustiça relativa que representam relativamente a outros serviços extintos apesar de compatíveis com o “estado atual das coisas”.