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Eliminação do salário do carrasco (1863)

Ilustração da última execução em Lisboa

 

Em junho de 1863 (1), na discussão na especialidade do orçamento do Ministério da Justiça, Aires de Gouveia (2) apresenta uma proposta para a eliminação do ofício e do salário do carrasco e uma outra para a abolição da pena de morte.

Na análise do orçamento, o Deputado confronta o salário anual dos curas (48$000 réis) com o dos carrascos (49$200 réis), denunciando a "torpeza" desta disposição que coloca o "ministro do patíbulo" em mais alta consideração do que o "ministro do altar", que respeita mais as "funções do homem que aguça a lâmina da guilhotina ou que entrança a corda da forca, do que as do homem que interpreta a página do Evangelho, que ensina os meios de conseguir a vida futura, que trata da regeneração do malditoso, que nos eleva a altura para Deus!!..."

Sobre a pena de morte, realça a sua inutilidade, face à ausência de execuções em Portugal nos últimos 17 anos. Argumenta ainda com a questão dos erros judiciais que condenam irremediavelmente pessoas inocentes, apresentando o exemplo de uma mulher executada pelo assassínio do marido, que, posteriormente, se verificou estar vivo.

Recorda depois a última execução em Lisboa, em 1842, de Matos Lobo (3), denunciando a "bruteza" de uma sociedade que vinga o crime de assassínio de três pessoas (4) provocando mais quatro cadáveres: o executado, o prior, vítima de uma apoplexia junto do patíbulo, e os pais do enforcado, que não sobrevivem à tragédia. Para Aires de Gouveia, a responsabilidade da "monstruosidade" do "assassínio legal" é coletiva:

"(…) quem é o carrasco? O carrasco é o homem que enforca? É o homem que guilhotina? É o jurado que declara o réu, o malfeitor? É o juiz que lavra a sentença? Não, senhores. O carrasco, digamo-lo com franqueza, somos nós. (…)

Do nosso coração, iluminado pela inteligência, sai o nosso voto, do nosso voto nasce a lei, da lei dimana a sentença, da sentença vem o carrasco, diante do carrasco levanta-se a forca e da forca pende a corda que esgana o pescoço do justiçado; portanto, entre o nosso coração e o pescoço do padecente há um fatal e abominável sorites. Lógica homicida!"

Defendendo o princípio da regeneração do criminoso, insurge-se contra a "vingança social" e a existência do algoz, contrária à religião, à política e à Constituição, que proíbe "os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis":

"Ora, em verdade, considerar um açoite uma pena cruel e não considerar assim o esganar barbaramente a garganta! Isto compreende-se?"

Aires de Gouveia apela à consagração da inviobilidade da vida humana nos códigos, pois a "legislação é um dos melhores padrões para aferir o sentir, a nobreza e a existência de um povo", devendo Portugal dar um exemplo da sua civilização:

"As nações não são grandes pelo número dos seus cidadãos; são grandes pelas grandes virtudes que praticam e que respeitam."

O salário do carrasco é eliminado do orçamento do Ministério da Justiça, mas a abolição da pena de morte para crimes comuns só seria aprovada em 1867, com Aires de Gouveia a defender, na ocasião, a extensão da medida aos crimes militares.

No debate de 21 de junho de 1867, ao recordar a sua proposta de 1863, provoca risos na Câmara dos Deputados:

"Lográmos então abolir uma entidade fatal que vinha inscrita no nosso orçamento, e que na relação nominal dos empregados do Estado vinha inscrita ao lado dos srs. Ministros."(5)

A 23 de junho de 1867, o folhetim do Diário de Notícias é dedicado ao último carrasco em Portugal, Luís António Alves, conhecido por Luís Negro. Condenado à morte em 1839 por crime de homicídio, vê comutada a pena em troca do emprego público de "executor de alta justiça". Na verdade, nunca chega a enforcar ninguém e, sem salário desde 1863, dedica-se ao ofício de sapateiro.



(1) Diário de Lisboa, n.º 125, de 6 junho de 1863, p. 1748-1749.
(2) António Aires de Gouveia (1828-1916) nasceu no Porto. Formado em Filosofia e Teologia, foi professor da Universidade de Coimbra, bispo do Algarve e de Betsaida e arcebispo de Calcedónia. Na área política, destacou-se como deputado, ministro e par do reino. Foi também maçon.
(3) Ver relato da última execução em Lisboa, ilustrações de Sandra Duarte.
(4) De acordo com a Revista Universal Lisbonense, de 21 de abril de 1842, foram quatro as vítimas de Matos Lobo: D. Adelaide Pereira da Costa, os seus filhos Júlia e Emídio, e a criada Narcisa de Jesus.
(5) Neste discurso, Aires de Gouveia faz ainda referência a um comentário jocoso da imprensa, em 1863, sobre a abolição do salário, mas não do ofício de carrasco: "Conseguindo tirá-lo do orçamento, parte da imprensa periódica, levando a mal o feito que praticávamos, veio motejar-nos, e disse – fica o carrasco por ora, e mate de graça".