dezembro 1975
Em dezembro de 1975, os
trabalhos da Constituinte são marcados pelo rescaldo do 25 de Novembro, pela
invasão de Timor-Leste pela Indonésia e pela suspensão da votação na
generalidade do relatório da Comissão sobre “Organização do Poder Político”
para serem iniciadas diligências junto do Conselho da Revolução para a revisão
da Plataforma de Acordo Constitucional.
O 25 de Novembro
No dia 2, no período “antes da
ordem do dia”, o debate centra-se na tentativa de golpe militar da
extrema-esquerda de 25 de Novembro.
O Presidente Henrique de Barros manifesta o seu
regozijo por verificar “que conservaram os seus lugares e as suas funções as
autoridades legítimas deste País, entre as quais peço vénia para colocar em
lugar de destaque a nossa Assembleia Constituinte.”
Américo Duarte (UDP) apresenta um protesto contra o
Governo:
“A situação por que o povo português acaba de passar é
uma consequência direta da luta pelo controlo do Governo pelos partidos da
burguesia e o ambiente de guerra civil que estes criaram.
A situação criada, apesar dos dispositivos militares
desencadeados, veio mostrar que o mal não era um mal militar, mas sim um mal
político que resulta da luta entre os partidos burgueses que dividem o povo.”
Mota Pinto (PPD) usa da palavra para condenar o golpe:
“Condenamos vivamente e sem ambiguidades o golpe
antidemocrático e contrarrevolucionário perpetrado contra o poder legitimamente
constituído, contra entidades e órgãos indesmentivelmente apoiados pela
esmagadora maioria do povo. O golpe contrarrevolucionário, nos termos em que
aflorou, é a face patente e aberta de uma conspiração antidemocrática mais
vasta, com agentes e instigadores semiencobertos.”
Carlos Brito (PCP), após contestar “uma campanha de
calúnias, da qual sobressai a tentativa de responsabilizar o meu partido pelos
recentes acontecimentos”, lança um alerta sobre a viragem à direita na política
nacional:
“O perigo do fascismo, que desde há tempo paira no
horizonte político português, toma expressão mais carregada.
Todas as forças reacionárias estão a preparar-se para
explorar a derrota da esquerda militar, reforçarem a iniciativa, ocuparem novas
posições, ultrapassarem e remeterem a um papel secundário todos os sectores
democráticos, mesmo os moderados, que até há pouco apoiavam e empurravam na
luta contra a esquerda.”
Em nome do PS, José Luís Nunes apresenta uma
declaração sobre a insurreição de 25 de Novembro, aprovada com a abstenção do
PCP e do MDP-CDE:
“Considerando ter sido jugulada pelas forças armadas,
de forma exemplar, a insurreição de 25 de Novembro desencadeada por sectores
político-militares pseudorrevolucionários;
Considerando o alto significado da vitória das forças
democráticas, que, derrotando os adversários da liberdade, restauraram os
verdadeiros princípios do 25 de Abril;
Considerando a compreensão manifestada pelo povo
português, que, disciplinada e confiadamente, obedeceu às palavras de ordem das
autoridades legítimas;
Considerando a coragem, a firmeza e a dignidade das
forças armadas, a que se deve não nos encontrarmos perante uma sangrenta
tragédia;
A Assembleia Constituinte declara:
1.º Condenar, nos termos mais veementes, a insurreição
de 25 de Novembro, incitando as autoridades a procederem a um claro e
inequívoco inquérito que traga à luz toda a verdade;
2.º Lembrar a necessidade de se proceder ao justo
julgamento dos culpados em tribunais comuns, extinguindo-se, desde já, todos os
tribunais excecionais, nomeadamente o que visa julgar os implicados no 11 de
Março;
3.º Lamentar as mortes verificadas, nomeadamente as do
tenente Coimbra e do segundo-furriel Pires, encarregando-se o Exmo. Presidente
de expressar às famílias das vítimas, ao seu comandante, coronel Jaime Neves,
bem como a todos os seus camaradas, o profundo pesar desta Assembleia;
4.º Saudar as forças armadas portuguesas pelo alto
sentido profissional e patriótico com que atuou nas difíceis missões que lhes
foram atribuídas;
5.º Saudar o povo português, manifestando a firme
intenção de sempre e em qualquer altura ser o fiel intérprete da sua vontade.”
Freitas do Amaral (CDS) congratula-se “com a vitória
da liberdade, da ordem, do Estado, sobre a rebelião armada, que destruiria as
primeiras e subverteria o último”, considerando o 25 de Novembro “uma vitória,
não definitiva, mas importante, sobre a revolução comunista”, afirmando ainda:
“Depois de tantos anos de uma ditadura de direita, o
povo português não está disposto a experimentar uma ditadura de esquerda.”
Levy Baptista (MDP-CDE) denuncia o aproveitamento da
direita da situação política:
“A situação criada depois dos acontecimentos de 25 de
Novembro, pela gravidade de que se reveste, justifica sérias apreensões por
parte das forças progressistas.
Longe de traduzirem qualquer ‘golpe’ preparado e
amadurecido – pois é por demais clara a ausência de qualquer plano que tenha
funcionado ou estivesse em vias de funcionar, do lado das forças militares que
vinham empenhando-se na democratização das estruturas militares –, tais
acontecimentos surgem na sequência da luta que há muito vinha sendo travada,
por estes objetivos, nas fileiras das forças armadas, na qual sobressaiu, no
período imediatamente anterior, a luta reivindicativa dos paraquedistas, que
congregou em torno de si diversas linhas de resistência ao acentuado desvio da
direita que o processo revolucionário vinha sofrendo, e de que são expressões
mais evidentes os saneamentos à esquerda e as medidas repressivas tomadas
contra militares e democratas consequentes.
A gravidade e o perigo da evolução da situação a que
vimos assistindo, nos últimos dias, resultam do aproveitamento que as forças de
direita delas estão fazendo, permitindo-se desencadear iniciativas que se
caracterizam por acentuados avanços dessas mesmas forças de direita.”
A
invasão de Timor-Leste
No dia 7 de dezembro de 1975, o território de Timor-Leste é invadido pelas
forças armadas da Indonésia. Através da lei n.º 7/74, de 27 de julho,
Portugal tinha reconhecido o direito à autodeterminação e à independência dos
povos.
Na sessão de 9 de dezembro, o Parlamento
condena os acontecimentos e aprova a seguinte moção:
“A Assembleia Constituinte Portuguesa face à agressão indonésia contra o
território e o povo de Timor-Leste sob Administração Portuguesa, à revelia do
direito internacional, do direito dos povos a disporem de [si] próprios e até
das repetidas declarações de não intervenção do Governo de Jacarta:
1. Protesta energicamente contra tal violação qualificada;
2. Solicita ao Governo Português que tome todas as medidas necessárias à
normalização da situação e à reparação dos males causados, de modo a assegurar
o prosseguimento correto do processo de descolonização, garantindo ao povo do
Timor-Leste o seu inalienável direito de decidir do seu futuro;
3. Solidariza-se com o povo do Timor-Leste, vítima dos massacres perpetrados
pelas forças invasoras;
4. Apoia as medidas já tomadas pelo Governo Português.”
A Constituição de 1976 consagraria, no seu artigo 307.º, o vínculo de
Portugal na promoção da independência de Timor-Leste:
“Portugal continua vinculado às responsabilidades que lhe incubem, de harmonia
com o direito internacional, de promover e garantir o direito à independência
de Timor”.
Debate sobre a Organização do Poder
Político
O debate sobre a Organização do Poder Político,
dominado pela questão da revisão do Pacto MFA-Partidos, nomeadamente no papel
das forças armadas no texto constitucional a aprovar, decorreu nas sessões
de
2, 3, 4, 5, 9 a 10 de dezembro. Nesta última reunião, foi aprovada
uma proposta do PS de suspensão da votação deste título da Constituição:
“Considerando:
1. Que até agora o debate na generalidade sobre o
parecer da 5.ª Comissão evidenciou a desadaptação das disposições da Plataforma
de Acordo Constitucional ao curso democrático da Revolução entretanto
readquirido;
2. As declarações já produzidas por alguns
Conselheiros da Revolução sobre a conveniência de rever a referida Plataforma
de Acordo Constitucional.
O Grupo Parlamentar do PS propõe:
1) Que o debate sobre o parecer da 5.ª Comissão seja
suspenso sem votação e o texto do parecer baixe de nova à Comissão;
2) Que se encetem diligências junto do Conselho da
Revolução para tomar conhecimento da sua posição oficial sobre a eventual
revisão da Plataforma de Acordo Constitucional;
3) Que, no caso de o Conselho da Revolução decidir
rever a Plataforma de Acordo Constitucional, se encetem imediatamente as
negociações com os partidos, tomando em conta, para esse efeito, as
intervenções produzidas nesta Assembleia, devendo entretanto prosseguir os
trabalhos constituintes com o debate e votação dos pareceres sobre os títulos
seguintes.”
A proposta é aprovada com os votos contra do PCP que,
através de Vital Moreira, declara:
“Entendemos que, sem prejuízo de renegociação de
aspetos da Plataforma, ela continua a conter a ideia de intervenção atuante de
um movimento militar progressista, que continuamos a achar útil e
imprescindível ao curso revolucionário.
Entendemos também que na discussão aqui tida é desde
logo prejudicada pelo facto de um dos outros interessados, dos principais
interessados, não ter participado, o MFA, para além do facto de também não
terem participado outros partidos que assinaram a Plataforma e aqui não
representados, e que nem por isso se pode dizer que não estejam interessados
também na Plataforma.
Entendemos também que não se provou, ao contrário do
que dizem os considerandos da proposta, a desadaptação no essencial da
Plataforma ao curso do processo revolucionário, nem existe, que saibamos,
qualquer iniciativa oficial ou oficiosa do Conselho da Revolução, órgão supremo
do MFA, no sentido de promover a revisão da Plataforma.
Entendemos, finalmente, que a própria Plataforma e o
próprio texto da 5.ª Comissão têm meios que permitiriam a todo o tempo
renegociar os aspetos que consideramos eventualmente renegociáveis da
Plataforma e, portanto, que nada prejudicaria o facto de imediatamente
passarmos à votação e à discussão na generalidade do texto da 5.ª Comissão.”
Momentos antes, Sophia de Mello Breyner (PS) defendia
a revisão da Plataforma e a separação do poder político e do poder militar:
“Vivemos num mundo onde a violência existe e por isso
todos os povos precisam de um exército; para defender as suas fronteiras e para
defender as suas leis; para que as fronteiras que um povo definiu e criou ao
longo da sua existência não possam ser destruídas; para que as leis que um povo
livremente escolheu não possam ser destruídas. E é por isso que um verdadeiro
exército é sempre um exército para a liberdade.
Mas, exatamente porque tem uma tarefa específica, o
exército tem sempre uma competência específica. Não compete ao exército fazer a
política, mas sim defender a liberdade da vida política.
Mas o exército inverte a sua tarefa e destrói-se a si
próprio quando de qualquer modo se transforma em órgão de soberania.
Um exército que governa ou se transforme numa nova
forma de aristocracia, ou se transforma em ditadura militar ou se destrói a si
próprio.
Vimos, nos meses que acabámos de viver, como a
intervenção política dos militares arrasta o exército para a sua desagregação.
Vimos assembleias de regimentos onde militares votaram o fuzilamento de outros
militares. Vimos como a disciplina - sem a qual um exército se transforma em
bando armado – se desagrega quando o poder político se confunde com o poder
militar.
Não queremos regressar atrás na história. Não queremos
um exército dividido em fações e assediado por todos aqueles que o procuram
conquistar para a intriga do poder. E não queremos um exército que
sobrepondo-se às fações se transforme numa nova ditadura.
Queremos ser regidos por leis e não queremos ser
regidos por regimentos.
Queremos um exército que garanta a construção da
democracia e não um exército que se autodestrói ou destrói a democracia.
Porque numa sociedade moderna o poder militar e o
poder político são de natureza diferente e a confusão entre um e outro é, por
sua natureza, ambígua. Daí em grande parte a instabilidade exaustiva e
destrutiva que se apoderou da Revolução.
Parece-me por isso evidente que devemos meditar sobre
os acontecimentos destes últimos meses. Devemos aprender a lição do erro. Sair
do fascismo não foi fácil. E sob a verbosa carapaça de teorias temos vivido às
apalpadelas à procura do exato contorno do real. Os perigos que o pacto traz
consigo tornaram-se cada vez mais evidentes.
Por isso creio que o pacto deve ser reequacionado e reformulado.
Entre a data em que o pacto foi assinado e a momento que estamos a viver
passaram-se crises gravíssimas que nos devem servir de lição.”
Propostas dos partidos sobre a revisão da Plataforma.
A segunda Plataforma de Acordo Constitucional seria assinada em
26 de fevereiro de 1976, suprimindo a Assembleia do MFA como órgão de
soberania e restringindo as competências do Conselho da Revolução. Determinava
ainda a eleição do Presidente da República por sufrágio direto e universal, em
oposição ao previsto no primeiro acordo, em que a eleição era feita por um
colégio eleitoral constituído pela Assembleia do MFA e a Assembleia
Legislativa.
As últimas sessões de 1975 são dedicadas à matéria
relativa aos tribunais (11, 12, 16, 17, 18 e 19 de dezembro). Em 6 de janeiro de 1976, este título da
Constituição é votado na especialidade.