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"O Anão das Chagas, ou o algoz da indústria portuguesa" (1867)

Se o século XIX português foi pautado pela instabilidade política, dele nos ficaram também algumas das mais notáveis “peças” de combate político, em textos de crítica mordaz, não raras vezes intentando contra alvos altamente personalizados, em alguns casos com o autor sob a proteção de um pseudónimo, noutros, como no opúsculo de 1867 que trazemos hoje, O Anão das Chagas, ou o algoz da indústria portuguesa, publicados sob anonimato.

O visado é, nesta obra, José Maria Caldeira do Casal Ribeiro (1825-1896) que, mais tarde (1870), seria distinguido com o título de 1.º Conde do Casal Ribeiro, por decreto de D. Luís I. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, jornalista (com contribuições em publicações como O AtheneuA Civilização, a Revista Universal Lisbonense ou A Semana de Lisboa) e político destacado do rotativismo oitocentista português (eleito sucessivamente à Câmara dos Deputados entre 1851 e 1865 e Par do Reino vitalício nesse último ano), Casal Ribeiro tinha à data deste opúsculo tomado recentemente posse na pasta dos Negócios Estrangeiros do Governo de Fusão (entre Regeneradores e Históricos), presidido por Joaquim António de Aguiar, num mandato que teve como datas extremas 9 de maio de 1866 e 4 de janeiro de 1868.

Um ponto sensível da sua governação dos Negócios Estrangeiros emergiu logo em 29 de maio de 1867, pelo teor da circular que enviou aos chefes das várias missões portuguesas, segundo a qual tencionava “Estreitar muito particularmente os vínculos de amizade e confiança que nos unem ao reino vizinho, vínculos que, no interesse de ambos os povos peninsulares, convém que sejam cada vez mais íntimos e cordeais, dando à fraternidade de Portugal e Espanha a única sebe sólida, a única compatível com as tradições gloriosas dos dois povos, a única apropriada a acrescentar à felicidade comum o pleno e mútuo respeito da independência de cada um”. O trauma ainda não superado da União Ibérica, feito ressurgir por correntes federalistas, produziram reações de oposição. Cite-se Eça de Queiroz, que reage assim: “A política do sr. ministro é talvez má, mas as suas intenções são boas. Ele sente a decadência, a morte, o abaixamento de Portugal; entende que nos devemos apoiar em alguém; sim, mas não nos apoiemos nos dentes da loba”. E continua: “Se é necessário apoio, tomemos o braço à Espanha, e vamos como dois inválidos amigos por essa Europa fora pedir esmola e agasalho para ambos”.

O tratado comercial com a França terá sido outra medida pouco consensual, pelo impacto negativo sobre a produção nacional: “algoz da indústria portuguesa” alude precisamente a esses efeitos. Polémica foi, igualmente, a reforma do Ministério dos Negócios Estrangeiros, envolvendo um aumento de despesa de mais de 50%.

O destaque do novo cargo, mas também a evolução do próprio posicionamento político de Casal Ribeiro – “de um republicanismo de inspiração francesa para um conservadorismo de matriz religiosa”– tornam-no alvo fácil do autor não identificado: “É por isso que o vemos aqui humilhado, ali soberbo e altivo, hoje democrata, amanhã servo da realeza, agora liberal, logo reacionário e ultramontano; num dia tribuno do povo, no outro orador da aristocracia; e neste vaivém de opiniões, neste contradizer constante do seu crer e não crer, aí o temos no alto fastígio da república, ontem abatido pelas garras do leão de Castela, hoje curvado à imposição das águias da França! E é Portugal a vítima obrigada de todos os desvarios e também de todas as ambições deste anão de corpo e alma, que por norma do seu viver só conhece o egoísmo!”.

O “anão”, no decurso do texto, recebe as mais diversas adjetivações: “algoz”, que pelo tratado de comércio com França abriu os portos nacionais às suas “riquezas fabris”, condenando a incipiente indústria nacional; “traidor”, que não honra os compromissos passados, designadamente junto das classes operárias, sob a alegação de que “Ontem não é hoje”; “humilhado”, sujeito a integrar um Governo de fusão que de início não apoiou; “orgulhoso”, por exigir remuneração pelo lugar ministerial até então ocupado graciosamente; “ridículo”, por defender a “aliança íntima” com Madrid enquanto o Ministério da Guerra, tutelado por Fontes Pereira de Melo, investia na capacidade militar do País; “ibérico”, pelas demonstrações de simpatia política para com Espanha; “reacionário”, pela aproximação a certas figuras de Espanha, designadamente Narvaez e o padre Claret; “jacobino”, por expor Portugal à pujante economia de França, fazendo “desta parte da península uma colónia francesa”; “contrabandista”, pela margem de arbitrariedade do imposto ad valorem consagrado no tratado comercial firmado com a França; “especulador”, por determinar os direitos de importação em função de alegados interesses de enriquecimento pessoal; “burlista”, por não serem efetivos os ganhos prometidos para a agricultura nacional, por via do tratado de comércio; para redundar num “Anão desmascarado”, com um passado “todo de contradições; de retrações, de humilhações vergonhosas!”

O texto é complementado com uma caricatura, também ela anónima, onde Casal Ribeiro, Ministro dos Negócios Estrangeiros, espezinhando Portugal, surge ladeado pela rainha Isabel II de Espanha, à qual se encontra unido por “Aliança política”, e Napoleão III de França, ao qual se encontra unido por “Aliança Industrial”. Como legenda, surge o poema:

“1.º

Ó Rainha o que me ofereces

Se te vender Portugal?...

Tu Imp’rador que prometes

Pela indústria nacional?...

 

2.º

Por uma ação tamanha

Dou uma banda, uma grão-cruz,

Faço-te grande de Espanha,

E até Menino Jesus.

 

3.º

Se o negócio for direito

Aos int’resses da França,

Ponho-te fitinha ao peito

Minha lindinha criança.”

 

Este curioso texto pode ser consultado, em formato digital.