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A Ala Liberal e a Revisão Constitucional de 1971

A 2 de dezembro de 1970, o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, deslocou-se ao Palácio de São Bento para apresentar, perante a Assembleia Nacional, a proposta de revisão constitucional do Governo. A sua política reformista, que suscitara, inicialmente grandes esperanças de democratização do regime, entrara, nesse ano de 1970, num período de retrocesso.1


Palácio da Assembleia Nacional, postal, Arquivo Histórico Parlamentar (AHP).

A desilusão com as eleições de 1969 para a Assembleia Nacional e a dinâmica oposicionista, entretanto ganha no seio dos sindicatos graças às "reformas" implementadas no ano anterior, resultaram no aumento e na radicalização da atividade da Oposição. A reação do Governo fez-se sentir com o agravamento da repressão policial e com o retrocesso legislativo no campo sindical e laboral.2

Apesar disso, havia ainda quem acreditasse que o regime podia ser democratizado por dentro, pacificamente, por meio da conquista progressiva de direitos e liberdades. Tratava-se da chamada «Ala Liberal», um grupo de deputados que tinha aceitado integrar as listas da União Nacional, em 1969, com o objetivo de, contra os setores conservadores do regime, apoiar Caetano nas suas reformas, reservando, no entanto, um estatuto de independência e liberdade face ao Governo e fazendo depender o seu suporte da aprovação de medidas que fossem no sentido da desejada democratização.3


Marcelo Caetano reunido com Deputados na Biblioteca da Assembleia Nacional, fotografia de Miranda Castela, AHP.

Os liberais consideravam a segunda sessão legislativa, então no seu começo, como uma fase decisiva, durante a qual se verificaria se o regime iria, ou não, evoluir verdadeiramente num sentido democrático.4 A revisão constitucional surgia, aos seus olhos, certamente, como o momento-chave. Aliás, o motivo que levara a então figura mais destacada da Ala Liberal, Francisco Sá Carneiro,5 a candidatar-se a deputado tinha sido a vontade de aproveitar a revisão para tentar promover a democratização do regime, segundo o colega Joaquim Pinto Machado.6


Francisco Sá Carneiro, AHP.

No entanto, para a Ala Liberal, a proposta governamental 7 revelou-se «um balde de água fria em manhã de inverno», nas palavras do historiador José Manuel Tavares Castilho.8 No seu discursoMarcelo Caetano foi claro nas intenções que haviam presidido à elaboração do texto: «O propósito que o Governo agora visa é justamente o de atualizar e revitalizar o texto constitucional. Não se trata, como é óbvio, de alterá-lo radicalmente.» Ou seja, fazendo justiça ao seu «propósito de renovação na continuidade», «sem espírito de demolição, nem frenesi de mudança», Caetano, longe de promover uma verdadeira liberalização - muito menos preparar uma transição democrática - por via de uma mudança substancial da Constituição, limitava-se a propor um conjunto de modificações com pouco ou nenhum impacto no cariz autoritário e antiliberal do regime: um incremento das competências da Assembleia Nacional, mantendo-a, porém, na sua posição bastante secundária face ao Governo, o qual, por sua vez, via os seus poderes ainda mais aumentados e mantinha larga autonomia relativamente à mesma Assembleia; e uma tímida tentativa de dar mais garantias aos cidadãos no âmbito da aplicação das «medidas de segurança», sobretudo as «privativas ou restritivas da liberdade pessoal», para responder, provavelmente, às denúncias de abusos policiais cometidos sobre os suspeitos de crimes políticos. Em simultâneo, mantinha o sufrágio indireto do Presidente da República e era omisso quanto à liberdade de imprensa.

A alteração mais profunda dizia respeito ao ultramar, em concordância com o projeto marcelista de «autonomia progressiva». Propunha-se a transformação das províncias ultramarinas em regiões autónomas, às quais se atribuía uma série de direitos, entre eles o de ter os seus próprios «órgãos eletivos de governo», com competência legislativa e executiva, administrar as suas finanças, e «possuir regime económico adequado às necessidades do seu desenvolvimento e do bem-estar da sua população». Para sossegar os mais conservadores, reafirmavam-se «a unidade da Nação», «a solidariedade entre todas as parcelas do território português», e «a integridade da soberania do Estado». Do seu discurso, inferia-se, ainda, que o Presidente do Conselho assegurava a continuação da guerra em África, a qual, aliás, era essencial para o tal projeto de autonomia progressiva.9


Mota Amaral, AHP.

Havia na proposta governamental a intenção de agradar a liberais e a conservadores, fazendo algumas cedências a um e a outro setor.10 Para os primeiros, o que Caetano oferecia era muito escasso e não mudava em nada a essência do regime.11 Era necessário agir. Sá Carneiro e João Bosco Mota Amaral redigiram, então, em muito pouco tempo, um projeto de revisão constitucional em linha com as suas ideias de liberalização, que foi publicado no suplemento ao Diário das Sessões da Assembleia Nacional no dia 19 de dezembro de 1970 como projeto de lei n.º 6/X. Assinado por mais treze deputados, entre eles, Francisco Pinto Balsemão, João Pedro Miller Guerra, Joaquim Magalhães Mota, Joaquim Pinto Machado e José Gabriel Correia da Cunha, foi muito mal recebido por Marcelo Caetano, que logo escreveu a Mota Amaral manifestando «profunda surpresa» perante o seu conteúdo, «hostil à política» que havia adotado e «assente em princípios e seguindo orientações radicalmente opostas» às declaradas no seu discurso e no relatório da proposta do Governo.12


Pinto Balsemão, AHP.

Caetano acusou os liberais de quererem «desarmar o Poder» num momento «tão cheio de incertezas e de ameaças» e de procurarem «precipitar e radicalizar soluções que não deixariam de suscitar viva reação e obrigar o Governo a procurar apoios onde os encontre».13 Estava consumada a rutura entre Caetano e os liberais,14 cuja relação, diga-se, tinha assentado, desde o início, num equívoco causado pelo facto de cada um dos lados estar convencido de que o outro lhe podia dar mais do que aquilo a que, de facto, se tinha comprometido.15


Miller Guerra, AHP.

O projeto de revisão constitucional da Ala Liberal era, efetivamente, demasiado avançado para poder ter a aprovação do Presidente do Conselho. Como seria de esperar, tendo em conta os fins pelos quais os deputados liberais se batiam, o texto caraterizava-se por uma muito significativa ampliação dos direitos, liberdades e garantias. Retiravam-se os condicionalismos aos direitos ao trabalho e à inviolabilidade do domicílio e sigilo da correspondência; introduziam-se o direito de emigração, bem como o de deslocação e fixação no território nacional; determinava-se o direito à «informação livre e verídica», e conferia-se ao Estado a função de zelar pela «livre formação e expressão» da opinião pública; estabeleciam-se as bases constitucionais para uma futura lei de imprensa,16 como a ausência de censura administrativa, prévia ou não, a «liberdade de obtenção e divulgação de informações», a livre fundação de «empresas jornalísticas, editoras e noticiosas», ou a proteção da independência e do sigilo profissional dos jornalistas; suprimia-se o reconhecimento da religião católica como «religião da Nação portuguesa» e consagrava-se a liberdade religiosa, com o culto limitado, somente, por atos «incompatíveis com a vida e integridade física da pessoa humana e com os bons costumes».


Magalhães Mota, AHP.

Era também notória a atenção especial dada à secção relativa aos procedimentos policiais e judiciais, procurando garantir os direitos dos suspeitos e arguidos e evitar os abusos das autoridades no que tinha a ver com a instrução do processo e a aplicação de medidas de segurança e de «penas privativas ou restritivas da liberdade pessoal», com a prisão preventiva sem culpa formada, por exemplo, a ser alvo de limitações consideráveis. Refira-se que, além disso, era atribuída ao Estado a responsabilidade de garantir «o efetivo exercício e funcionamento dos direitos, liberdades e garantias», sublinhando a necessidade de vigilância do estrito cumprimento das normas constitucionais.

O outro tópico a que a Ala Liberal mostrou maior dedicação foi o dos órgãos de soberania. A modificação mais importante que propunha era o regresso ao sufrágio direto e universal do Presidente da República, visto que este, desde 1959, era escolhido por um colégio eleitoral. Permitir a sua eleição por esse modo, poderia permitir a ascensão ao cargo de alguém favorável ao desencadear de um processo de democratização,17 beneficiando dos vastos poderes de que dispunha - desde logo o de nomear e exonerar os membros do Governo -, e com uma verdadeira legitimidade, oriunda do exercício da soberania popular por parte dos cidadãos votantes. Sintomática deste propósito é a concessão de um novo poder presidencial, a liderança suprema das Forças Armadas, as quais seria imprescindível manter sob controlo do chefe do Estado.


Correia da Cunha, AHP.

Em simultâneo, os liberais procuraram aumentar as competências da Assembleia Nacional, desde logo, as que lhe eram exclusivas em termos de aprovação das bases gerais das leis. Estas passaram a incluir, por exemplo, as referentes à eleição do Presidente da República e da Assembleia Nacional, às garantias de processo penal, e ao exercício das liberdades de informação, expressão, ensino, reunião, associação, religião, e migração, tudo matérias, que, como vimos, eram centrais ao projeto liberal e sobre as quais era preciso influir, com autonomia face ao Governo. A Assembleia Nacional adquiria, igualmente, maior capacidade de escrutínio da ação do Governo na apreciação e ratificação de decretos-leis por este publicados fora do âmbito das autorizações legislativas.

Quanto à opção de não incluir qualquer menção às províncias ultramarinas no projeto, Sá Carneiro foi pouco claro na sua justificação: «A sua omissão no projeto pode ter vários sentidos, prestar-se a diferentes interpretações, desde o apoio à proposta do Governo até à defesa da manutenção das atuais disposições. […] Penso que a omissão da matéria no projeto n.º 6/X revela apenas que os seus signatários não sentiram necessidade de a contemplar. Se o fizeram em virtude de perfilharem os pontos de vista do Governo ou se optaram pela inalteração do texto atual, caberá a cada um dizê-lo na altura própria.» Para Fernando Rosas, a atitude dos liberais relaciona-se com a sua convicção no potencial do aumento das liberdades para gerar, posteriormente, uma solução política para a guerra, isto é, decidiram-se por um adiamento tático dessa discussão.18 Já Tiago Fernandes afirma que o silêncio sobre o ultramar seria uma «moeda de troca» para facilitar a concordância de Marcelo Caetano com a eleição do Presidente da República por sufrágio direto.19

A proposta do Governo, o projeto da Ala Liberal, e um outro projeto, o n.º 7/X, da autoria de um grupo de deputados conservadores, seguiram para a Câmara Corporativa para apreciação. Os pareceres surgiram nas Atas da Câmara Corporativa a 16 de março de 1971. A proposta foi recomendada para aprovação na generalidade por considerar-se que as «adaptações e aperfeiçoamentos» nela inclusos, embora necessários, não significavam uma «quebra no regime constitucional estabelecido e nas instituições ideadas, vão decorridos quase quarenta anos». Quanto aos dois projetos, a sua aprovação na generalidade não foi aconselhada, com a deliberação relativa ao dos liberais a firmar-se, segundo o procurador da Câmara Corporativa André Gonçalves Pereira, «não só na falta de bondade ou oportunidade das propostas […], mas também em exceder o seu espírito os limites em que deve manter-se a revisão constitucional».20

Quanto à comissão eventual constituída pela Assembleia Nacional para avaliar os três documentos, presidida pelo histórico Albino dos Reis, não se pronunciou, na generalidade, sobre os dois projetos com origem parlamentar. Limitou-se a aprovar a proposta do Governo na generalidade e, depois, tomando-a como base de trabalho, analisou-a na especialidade, confrontando-a, sempre que havia «matéria coincidente», com os projetos. Todavia, a parte destes que incidia sobre assuntos diferentes da proposta também foi alvo de exame por parte da comissão na especialidade. Do processo resultou um novo projeto, que não alterou o essencial da proposta governamental, tendo sido muito poucos os contributos adotados oriundos dos textos da Ala Liberal e dos conservadores.

O debate parlamentar da revisão constitucional, na generalidade, iniciou-se na Assembleia Nacional a 15 de junho de 1971. Para lá dos liberais, mais dois grupos marcaram a sua presença: o dos deputados «centristas», que desejavam reformas, mas suaves, e, portanto, apoiavam a proposta do Governo; e o dos deputados conservadores, tementes das mudanças que poderiam resultar da revisão.21


A Assembleia Nacional em 1971, fotografias de Miranda Castela, Arquivo Histórico Parlamentar.

Os temas que mais monopolizaram as intervenções foram os direitos, liberdades e garantias, o modo de eleição do Presidente da República, e o ultramar, isto é, os assuntos que, no fundo, geravam maiores divergências,22 se bem que a própria revisão estava longe de ser consensual.

O conservador Rui de Moura Ramos, por exemplo, manifestou muitas dúvidas quanto à oportunidade da revisão, numa altura em que o País estava em guerra e era, por isso, fundamental que, na “frente de combate” interna se zelasse pela unidade nacional, a qual poderia ser ameaçada pelas alterações propostas. E questionava: «fazendo alterações que só aparentemente não têm grande significação, não estaremos nós a minar perigosamente, enfraquecendo-o, o princípio da unidade, que tanto se impõe defender e fortalecer neste momento crucial para a vida da Nação?».

O centrista Ricardo Horta foi um dos que procurou afastar este tipo de preocupações, chamando a atenção para o caráter restrito da revisão, que procurava, apenas, «ajustar as instituições às exigências das circunstâncias, adaptá-las às realidades concretas», sem constituir uma «mutação radical», ou «uma reforma no sentido revolucionário da palavra».

Do lado liberal, Mota Amaral mostrou-se convicto da necessidade urgente de atualizar a Constituição, colocando-a em conformidade com as exigências de uma sociedade que então vivia profundas transformações e preparando-a para as que viriam num futuro próximo. Dias mais tarde, Miller Guerra reforçaria a sua argumentação, estabelecendo uma ligação entre mudança política e progresso geral:

«A conservação de uma certa espécie de ordem, estabilidade e equilíbrio, definidos pelo Poder público e pelas classes dirigentes, é em grande parte incompatível com o progresso económico-social. A rapidez da evolução transtorna inevitavelmente a ordem antiga, causa perturbações, traz à superfície divergências, revela antagonismos. Mas o progresso comporta riscos que mais cedo ou mais tarde a sociedade tem de correr, a menos que o medo de um surto evolutivo lhe faça preferir a imobilidade da vida e da história. […] O meu modo de ver ficou expresso com clareza, como convém em matéria sempre tão controversa, mas agora mais do que nunca, porque nunca o mundo andou com maior velocidade, os diques de defesa foram mais quebradiços, os textos legais envelheceram com tamanha rapidez».

 Já Magalhães Mota resumiria o que para ele estava em causa da seguinte maneira:

«Creio firmemente que o grande problema que a revisão constitucional em curso nos coloca é aquele que comecei por referir: a passagem de uma sociedade em que a maior parte dos cidadãos vive em situação de marginalidade política para uma sociedade aberta e participada.»

No segundo dia do debate, Sá Carneiro, num longo discurso, que acabou por se assemelhar a uma apresentação parlamentar do projeto liberal de revisão constitucional, explorou profundamente o ponto dos direitos, liberdades e garantias. Após explicar a maneira como as sociedades contemporâneas tendiam a restringir a liberdade do Homem, e de como, perante essa realidade, a defesa das liberdades fundamentais e «o papel da Constituição como principal garantia do Estado de direito» ganhavam renovada importância, traçou um cenário negro quanto às liberdades em Portugal, identificando o caso da «liberdade física» como o mais grave, visto, por exemplo, ser possível prolongar a medida de prisão preventiva indefinidamente, não obstante as penas perpétuas serem proibidas. E disto concluiu:

«Entre nós as garantias individuais acham-se, de facto, à mercê do Governo. Hoje mais do que nunca a garantia dos cidadãos, tanto pelo que respeita aos seus direitos como pelo que se refere à limitação do poder político, há de estar nas normas constitucionais e no controle da constitucionalidade das leis. A Constituição tem de consagrar, clara e insofismavelmente, os princípios e as normas que institucionalizem a liberdade da pessoa, fundamento do Estado, fim e limite último do poder político, cabendo-lhe também garantir o respeito dos seus próprios preceitos. Essa é, em meu entender, a tarefa essencial que nos incumbe».

Nesta matéria, Miller Guerra enfatizou a relação entre liberdades e desenvolvimento:

«O estilo autoritário do poder político, o seu caráter pessoal, o antiliberalismo e a fidelidade intransigente a uma certa forma de tradição histórica desenham a fisionomia geral do regime que vigorou desde 1926. Dentro deste sistema emerge uma caraterística com desusada relevância: a supressão das liberdades públicas, traduzida pela censura, no campo do espírito, pela polícia política, no campo do comportamento físico. […] Por isso, estou convicto de que a restauração das liberdades públicas é a condição prioritária do desenvolvimento. Esta convicção não se baseia apenas em razões de ordem moral, mas igualmente em razões crematísticas, pois onde se suprimiram liberdades levantam-se embargos invencíveis a qualquer tipo de desenvolvimento: técnico, científico, económico, cultural, literário ou qualquer outro

Embora tenha elogiado o projeto da Ala Liberal, o centrista Rafael Ávila de Azevedo remeteu a adoção das suas propostas neste âmbito para uma futura revisão constitucional, por considerar que a falta de instrução e de preparação cívica dos portugueses tornava inoportuno o imediato alargamento e reforço dos seus direitos individuais, para o qual, os deputados mais conservadores da Assembleia, como seria de esperar, olhavam como uma caixa de Pandora que era imprescindível manter bem fechada.

Um deles, Raul Cunha Araújo, alertou que se estava a pretender «ressuscitar um passado bem morto», aludindo ao liberalismo individualista em que assentava o projeto redigido por Sá Carneiro e Mota Amaral, e invocou a manutenção da capacidade do Estado em combater a «subversão» para rejeitar «a constitucionalização das liberdades individuais nos termos ousados em que se têm defendido». Outro, João Ruiz de Almeida Garrett, foi categórico:

 

«Que, sobretudo depois da crise do capitalismo liberal subsequente à 1.ª Grande Guerra, por toda a parte, Estado e sociedade se aproximaram, é indiscutível. O gozo natural das liberdades individuais levou à exploração, à desagregação social; o exercício da liberdade conduziu à sua própria destruição. […] Em face deste panorama, sem dúvida verdadeiro, surpreende que se queira ver na simples reafirmação das liberdades do indivíduo a panaceia de todos os males. […] Em história, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Foi a liberdade ilimitada que se destruiu a si própria, e será ela que se voltará a negar

Quanto ao tema do modo de eleição do Presidente da República, o problema central, para a Ala Liberal, pode ser resumido nesta passagem do já mencionado discurso de Sá Carneiro:

«Verifica-se um acentuado desequilíbrio entre os órgãos de soberania, encontrando-se a Assembleia Nacional subalternizada e subordinada ao Chefe do Estado. O Presidente da República concentra todos os poderes, exercendo-os através do Chefe do Governo, mas o processo da sua eleição não é consentâneo com os princípios democráticos de soberania popular inscritos na Constituição nem assegura representatividade ao detentor do Poder, pois o colégio eleitoral carece dela e encontra-se em última análise dependente do Governo […] aproximamo-nos por isso de uma autocracia.»

No fundo, o Presidente da República tinha demasiados poderes para não dever ser eleito por todos os cidadãos e, logo, o sufrágio direto e universal devia ser reinstituído. Para lá de uma maior legitimidade para exercer o cargo, a escolha de um Presidente por este meio significava que a população, ainda que indiretamente, poderia pronunciar-se sobre a condução dos destinos do País, visto o Governo depender da nomeação presidencial e não responder perante a Assembleia Nacional.

Segundo Mota Amaral, «o sufrágio universal para a eleição do Chefe do Estado é, por mais que se diga contra ele, a melhor forma que até hoje se descobriu para assegurar a participação dos cidadãos na determinação das grandes linhas de rumo da sociedade política. […] O relevo das funções em causa propicia a reflexão coletiva e a discussão das questões de mais vital interesse ao País».

Almeida Garrett respondeu aos argumentos dos liberais quanto à falta de capacidade de intervenção política dos cidadãos causada pelo sufrágio indireto do Presidente da República. Visto que a Constituição consagrava o caráter corporativo do Estado português, Garrett era da opinião que a escolha do Presidente da República por um colégio integrado por representantes dos corpos da Nação - famílias, municípios, corporações - a partir de 1959 tinha sido nada mais do que um ato de coerência com aquele princípio. E os cidadãos não perdiam, por isso, a sua intervenção política: esta dava-se, contudo, não enquanto indivíduos, mas como membros dos diferentes corpos a que pertenciam, não prejudicando, ainda, a legitimidade de quem fosse eleito.

Cunha Araújo denunciou a posição dos liberais como uma rutura com a ideia de evolução na continuidade que presidia à revisão constitucional proposta pelo Governo e como desviante do «espírito apartidário» da Ação Nacional Popular (ex-União Nacional), em cujas listas tinham sido eleitos. A seu ver, a proposta do sufrágio direto era potencialmente subversiva, insinuando até que poderia tratar-se de uma tentativa de propiciar um golpe de estado constitucional, contrapondo-lhe o «sufrágio orgânico» como o «único capaz de possibilitar uma eleição consciente do Chefe do Estado com a efetiva participação da Nação organizada; organizada e consciente». Com efeito, para Cunha Araújo, o sufrágio direto não era adequado a um povo «impreparado politicamente» e «facilmente sugestionável por propagandas fáceis», para além de gerar «a intranquilidade e a balbúrdia».

Assinale-se, ainda, que, fora do círculo da Ala Liberal, houve quem considerasse preferível o sufrágio direto, como Ávila de Azevedo e Albino dos Reis, mas, para os quais, não era oportuna a sua reinstituição no contexto que então se vivia, justificação logo explorada, com ironia, por Magalhães Mota:

«Não deixa de ser curioso, aliás, assinalar como a argumentação que vem sendo produzida para a manutenção do sistema atual não combate no campo dos princípios: vai ater-se, quase exclusivamente, a critérios de oportunidade que, ao menos, oferecem a vantagem de ser “subjetivos”.»

Como se referiu na primeira parte deste artigoa Ala Liberal, preferira não sugerir alterações ao estatuto do ultramar no seu projeto. Embora Sá Carneiro, como se viu, não tenha sido completamente claro quanto ao significado daquela opção, o debate veio a demonstrar que a ideia era poder apoiar a proposta do Governo, pelas razões táticas já igualmente apontadas na primeira parte deste artigo. Assim, compreendem-se as palavras de Pinto Balsemão, quando declarou:

«Neste importante capítulo do ultramar, rever a Constituição é, portanto, cumprir a Constituição. Manter inalterado o seu texto seria negar o seu espírito, seria fechar os olhos à realidade, seria recusar a compatriotas nossos - brancos e pretos - o direito, que nós na metrópole detemos, de dispormos de organização política e administrativa própria. Deixemos, pois, os integracionistas com os seus sonhos respeitáveis e apoiemos o Governo na sua orientação realista de preparar o futuro das diferentes parcelas do território nacional.»

Os «integracionistas» de que Balsemão falava eram deputados ultraconservadores como Moura Ramos, ou Francisco Casal Ribeiro, críticos ferozes da autonomia das províncias ultramarinas, mesmo que progressiva.

O primeiro, por exemplo, achava que, numa altura em que Portugal travava uma guerra em África, em três frentes, e, por isso, mais do que nunca, era fundamental manter a ordem e a unidade nacionais, não se deviam estar a discutir «profundas transformações» ao estatuto do ultramar, ainda para mais com aquele teor. Moura Ramos condenou a proposta governamental de eliminação do artigo 133.º, que atribuía à «essência orgânica da Nação Portuguesa» a «função histórica» de colonizar, dominar e civilizar os territórios ultramarinos23, pois correspondia a retirar da Constituição «a motivação e justificação da presença ultramarina» pela qual Portugal se batia, naquele momento, em África. Em simultâneo, olhava para a autonomia das províncias ultramarinas como «o primeiro degrau para a obtenção de uma independência precoce», preocupação que Casal Ribeiro também partilhava, quando, referindo-se ao possível efeito subversivo da palavra «autonomia», exclamou:

«Há que deixar, aos que vierem e cujas intenções podem não ser nem tão claras nem tão puras, todas as portas fechadas no trinco, para que não haja gazua que as abra; e há palavras, quanto a mim, que podem transformar-se em autênticas gazuas!»

A 30 de junho, no final do debate na generalidade, o deputado José de Almeida Cotta informou o Plenário de que o Governo tinha decidido adotar o projeto da comissão eventual. De seguida, quando o Presidente da Assembleia Nacional, Carlos do Amaral Neto, anunciou a abertura do debate na especialidade, Manuel Trigo Pereira pediu a palavra para fazer um requerimento, solicitando que a proposta inicial do Governo e os dois projetos dos deputados fossem retirados da discussão em favor do projeto da comissão, ou seja, só este último seria alvo de análise e votação. Não obstante as tentativas de Sá Carneiro em impedir a votação do requerimento, invocando o Regimento, esta acabou mesmo por ocorrer, tendo aquele sido aprovado.24

Como demonstração de desagrado e indignação perante o sucedido, a maior parte dos membros da Ala Liberal não esteve presente nas cinco sessões de debate na especialidade, que culminou na aprovação da revisão constitucional no dia 7 de julho.25

A forma como decorrera este processo, bem como o seu desfecho, reveladores de que o reformismo marcelista era apenas superficial e não correspondia a uma vontade de real liberalização política, marcou o início de uma nova etapa na relação entre a Ala Liberal e Marcelo Caetano, caraterizada por um distanciamento progressivo. Este, a médio prazo, levaria, por um lado, à renúncia, ou à recusa de recandidatura, de boa parte dos deputados liberais, frustrados com os repetidos bloqueios às suas propostas reformistas, e, por outro, ao cada vez maior isolamento de Caetano, que, para lá dos apoios à esquerda, perderia, também, definitivamente, o suporte da ala mais conservadora do regime, em desacordo com a sua política ultramarina.26


[1] Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), vol. VII de História de Portugal (dir. de José Mattoso), s. l., Editorial Estampa, 1998, p. 490.

[2] Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), p. 490; cf. Fernando Rosas, Pensamento e Acção Política. Portugal Século XX (1890-1976), Lisboa, Editorial Notícias, 2003, pp. 117-121; cf. Fátima Patriarca, «Estado Social: a Caixa de Pandora», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), s. l., Círculo de Leitores, 2004.

[3] Tiago Fernandes, Nem Ditadura, Nem Revolução: a Ala Liberal e o Marcelismo (1968-1974), Lisboa, Assembleia da República / Dom Quixote, 2006, pp. 77-78, p. 117.

[4] Tiago Fernandes, op. cit., pp. 86-87.

[5] O líder original da Ala Liberal, José Pedro Pinto Leite, tinha falecido em julho de 1970.

[6] Tiago Fernandes, op. cit., p. 91.

[7] Para ter acesso à segunda parte do suplemento, onde se encontra o texto da proposta do Governo, é necessário descarregar o PDF do documento na totalidade.

[8] Manuel Tavares Castilho, Marcello Caetano. Uma Biografia Política, Coimbra, Almedina, 2012, p. 625.

[9] Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), p. 487.

[10] Tiago Fernandes, op. cit., pp. 90-91.

[11] José Manuel Tavares Castilho, op. cit., p. 625.
Como se verá na segunda parte do artigo, os deputados mais conservadores ficaram insatisfeitos com a autonomia político-administrativa que a proposta do Governo pretendia atribuir às províncias ultramarinas. Isto parece indicar que as cedências que Caetano lhes fez - segundo Tiago Fernandes, a manutenção da guerra em África e do estatuto do Presidente da República (Tiago Fernandes, op. cit., 90) - não parecem ter compensado aquela decisão do Presidente do Conselho.

[12] José Manuel Tavares Castilho, op. cit., p. 626.

[13] José Manuel Tavares Castilho, op. cit., p. 626.

[14] Rita Almeida de Carvalho, «O Marcelismo à Luz da Revisão Constitucional de 1971», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), p. 44.

[15] Cf. Rita Almeida de Carvalho, op. cit., pp. 39-41.

[16] Em novembro de 1970, os liberais tinham já apresentado um projeto de lei de imprensa, cuja discussão só viria a decorrer em meados do ano seguinte, em conjunto com uma proposta do Governo (cf. Tiago Fernandes, op. cit., 100-101).

[17] Tiago Fernandes, op. cit., pp. 93-94; Rita Almeida de Carvalho, op. cit., p. 58.

[18] Fernando Rosas, «Prefácio: Marcelismo: Ser ou não Ser», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), p. 21.

[19] Tiago Fernandes, op. cit., pp. 94-95.

[20] Ao contrário do que as palavras de André Gonçalves Pereira parecem mostrar - num esforço de compreensão do motivo da decisão dos seus colegas -, o procurador foi um dos três que votou vencido o parecer, juntamente com Maria de Lourdes Pintasilgo e Diogo Freitas do Amaral. Os dois primeiros defendiam que o projeto merecia ter tido uma discussão na especialidade, e Freitas do Amaral concordava com várias das alterações propostas pelos liberais (cf. Actas da Câmara Corporativa, n.º 67, 16 de março de 1971, pp. 683-684).

[21] Rita Almeida de Carvalho, «O Marcelismo à Luz da Revisão Constitucional de 1971», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), s. l., Círculo de Leitores, 2004, pp. Carvalho, pp. 50-51.

[22] Rita Almeida de Carvalho, op. cit., p. 50.

[23] Constituição Política da República Portuguesa, s. l., Imprensa Nacional de Angola, 1968, p. 41.

[24] Com a reabertura da Assembleia Nacional, depois das férias, Sá Carneiro apresentou um projeto de lei que considerava inconstitucional a revisão constitucional aprovada, mas, tendo a comissão de Legislação e Redação emitido um parecer negativo, nunca chegou a ser discutido, nem publicado no Diário das Sessões (Jorge Miranda, pp. 9-10).

[25] A ala mais conservadora da Assembleia Nacional também não participou na votação final (Rita Almeida de Carvalho, op. cit., pp. 71-72).

[26] Neste parágrafo, exceto onde já indicado com nota própria: Fernando Rosas, «Prefácio: Marcelismo: Ser ou não Ser», in Fernando Rosas, Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o Fim do Estado Novo (1968-1974), pp. 22-23; Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), vol. VII de História de Portugal (dir. de José Mattoso), s. l., Editorial Estampa, 1998, p. 491; Rita Almeida de Carvalho, op. cit., p. 71; Tiago Fernandes, Nem Ditadura, Nem Revolução: a Ala Liberal e o Marcelismo (1968-1974), Lisboa, Assembleia da República / Dom Quixote, 2006, pp. 116-117.