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Celibato das enfermeiras no Estado Novo

Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 1960


Deputada Maria van Zeller, 1945. Arquivo Histórico Parlamentar (AHP).

Em 1938, através do artigo 60.º do decreto-lei n.º 28 794, de 1 de julho, o regime do Estado Novo determina a proibição do exercício da profissão de enfermagem nos hospitais civis por mulheres casadas:

"Nos lugares dos serviços de enfermagem e domésticos (serviço interno) a preencher por pessoal feminino só poderão de futuro ser admitidas mulheres solteiras e viúvas, sem filhos, as quais serão substituídas logo que deixem de verificar-se estas condições."

O decreto-lei n.º 31 913, de 12 de março de 1942, confirma essa orientação:

"O tirocínio ou prestação de enfermagem hospitalar feminina são reservados a mulheres solteiras ou viúvas sem filhos." (§ 4.º do artigo 3.º).

O exercício da enfermagem é entendido como uma profissão eminentemente feminina, como transparece na intervenção Deputada Maria van Zeller, na Assembleia Nacional, em 1947:

"É um facto mundialmente assente, e por razões fáceis de compreender, que, salvo em casos especiais, os serviços de enfermagem devem ser confiados a mulheres. Ninguém como a mulher sabe debruçar-se delicadamente sobre a dor e no momento oportuno dizer a palavra que consola, encontrar o gesto e a atitude que aliviam e, na sua sensibilidade afetiva, dedicar-se aos doentes com um entusiasmo e espírito de sacrifício que, por vezes, atingem o heroísmo." (Diário das Sessões, n.º 112, 25 de março de 1947, p. 1044)

No entanto, ao considerar-se a enfermagem como uma profissão feminina incompatível com a constituição de família, nega-se, por outro lado, a missão mais importante das mulheres, que, de acordo com a ideologia do regime, assenta no seu papel de "esposas e mães".

Assim, dentro do próprio sistema, o diploma de 1942 sofre contestação, como é percetível nas sessões da Assembleia Nacional, com intervenções em defesa do fim da proibição do casamento das enfermeiras, tendo por base a "missão familiar” das mulheres.

Em 1950, o Deputado José Meneres associa-se à luta da Liga Portuguesa de Profilaxia Social pela revogação da legislação.

Compreendendo que a enfermagem deve ser "uma espécie de sacerdócio", de difícil conciliação com as "preocupações e deveres familiares", considera que apenas no caso das freiras se pode alcançar "o fim ideal de perfeita assistência na doença".

Porém, na impossibilidade de as religiosas assegurarem toda a assistência nos cuidados de sáude, o Deputado defende que o exercício da profissão por enfermeiras laicas deve obedecer aos princípios orientadores da Constituição, que "fazem derivar toda a organização política da Nação da constituição da família":

"A mulher tem importante missão a realizar: a de ser esposa e mãe. Todas as profissões que lhe sejam permitidas têm, a meu ver, de ser organizadas de acordo com este pressuposto, como dependência dele, e não de forma inversa.


Deputado Melo e Castro, 1966. Arquivo Histórico Parlamentar (AHP).

O casamento e a constituição da família não são, em regra, elementos impeditivos do exercício de enfermagem que a mulher casada, consciente de ter realizado honestamente o fim social a que Deus a destinou, pode dedicar à sua profissão muito maior carinho e devoção do que aquelas que, por virtude daquela proibição desumana, venham a ser vítimas dos mais graves conflitos morais, que, por evidentes, me dispenso de referir pormenorizadamente." (Diário das Sessões, n. º 51, 27 de abril 1950, p. 938)

​Também o Deputado Melo e Castro, em 1951, dá voz ao movimento pelo fim da proibição do casamento das enfermeiras, associando-se à pretensão do Sindicato Nacional dos Profissionais de Enfermagem, de médicos conhecedores das necessidades hospitalares, de "numerosas senhoras que exercem a profissão de enfermeiras (…) de diferentes matizes sociais", mas também da própria Igreja, que "desde o vértice venerando da sua hierarquia, reprova a vigente doutrina que exige o celibato para a enfermagem hospitalar feminina." (Diário das Sessões, n.º 106, 1 de maio de 1951, p. 995)

Mais tarde, em 1955, o tema é retomado pelo Deputado Urgel Horta, que considera o casamento benéfico no exercício da enfermagem, pois exerce sobre a mulher "uma ação de natureza fisiológica, de natureza psíquica, que a torna mais apta e mais compreensiva da alta missão social que desempenha" e aperfeiçoa as "suas qualidades morais – bondade, delicadeza, modéstia, abnegação, autoridade." Entende também a proibição do casamento das enfermeiras como contrária à defesa da família, enquanto princípio basilar do Estado, e denuncia a injustiça desta disposição legal:

O Deputado Urgel Horta (terceiro     a contar da esquerda) a conversar    com outros parlamentares, 1966.    AHP

O Deputado Urgel Horta (terceiro a contar da esquerda) a conversar com outros parlamentares, 1966. Arquivo Histórico Parlamentar (AHP).

"Não se compreende que num país onde a quase totalidade da população pratica a religião católica se lance sobre uma classe tão prestimosa uma injusta e infeliz proibição, sentença condenatória do direito de poder constituir família, do direito de organizar, com toda a legitimidade, o seu lar." (Diário das Sessões, n.º 84, 24 de março de 1955, p. 636)

O decreto-lei n.º 44 923, de 18 de março de 1963, vem autorizar o casamento das enfermeiras dos hospitais civis, continuando, no entanto, "a reconhecer-se as vantagens de, sempre que possível, contribuir, através de medidas legislativas, para afastar a mulher casada de preocupações e ambientes estranhos ao seu lar, onde lhe está reservada a mais nobre missão" e a considerar-se aconselhável o afastamento das mulheres casadas da profissão, "posto que a irregularidade de horários e a natureza absorvente das funções dificilmente se coadunam com os deveres de esposa e de mãe". O diploma de 1942 é alterado nos seguintes termos:

​"Ao tirocínio e à prestação de enfermagem hospitalar feminina, em princípio reservados a mulheres ou viúvas sem filhos, serão também admitidas mulheres casadas e viúvas com filhos, quando as necessidades de serviço aconselhem essa admissão, a qual implicará, sempre que possível, o estabelecimento de horários que melhor se ajustem às particulares condições familiares das tirocinantes ou enfermeiras."

Aspeto da Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 1960. AHP.

Aspeto da Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 1960. Arquivo Histórico Parlamentar (AHP).

​Na Assembleia Nacional, o Deputado Moura Ramos saúda a aprovação do decreto-lei n.º 44 923, acusando a lei antiga de "dar azo a inúmeros casos de mancebia, de filiações ilegítimas, de abortos criminosos e prostituição clandestina, chegando-se ao ponto (…) de se realizarem casamentos de enfermeiras que o não podiam celebrar e que para evitarem ser despedidas dos serviços não faziam averbar nos respetivos bilhetes de identidade o seu novo estado." (Diário das Sessões, n.º 93, 18 de abril de 1963, p. 2339)