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Separação do Estado das Igrejas (1911)

Caricatura sobre a Separação do Estado das Igrejas
"O Século: suplemento humorístico", 8 de dezembro de 1910.

Princípio fundamental da ideologia republicana, a laicização do Estado é um dos principais objetivos perseguidos pelo regime instaurado pela Revolução de 5 de Outubro de 1910.

O Governo Provisório, presidido por Teófilo Braga e com Afonso Costa como Ministro da Justiça e dos Cultos, procura de imediato reduzir a influência da Igreja Católica na sociedade portuguesa, nomeadamente através de produção legislativa, retomando diplomas relativos à expulsão dos jesuítas e à extinção das ordens religiosas e aprovando decretos de cariz anticlerical, como os respeitantes à alteração dos feriados, à abolição do juramento religioso, à eliminação do ensino da doutrina cristã nas escolas, ao divórcio ou ao registo civil.

A Lei da Separação do Estado das Igrejas, publicada em 20 de abril de 1911, completa este ciclo, determinando nos seus primeiros artigos a liberdade de consciência e a liberdade religiosa, com "todas as confissões religiosas" a serem "igualmente autorizadas", deixando a "religião católica apostólica romana" de ser a religião oficial do Estado e desvinculando a República de qualquer encargo relativamente aos cultos:

"Artigo 4.º A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto; e por isso (…) serão suprimidas nos orçamentos do Estado, dos corpos administrativos locais e de quaisquer estabelecimentos públicos todas as despesas relativas ao exercício dos cultos."

Com um extenso texto (196 artigos), a Lei da Separação inclui preceitos anticlericais que agravam o conflito já patente entre o poder político e a hierarquia católica, assim como a tensão no seio de uma população maioritariamente religiosa.

Entre as medidas mais polémicas, estão a passagem da gestão dos cultos para corporações laicas de assistência e beneficência, afastando os sacerdotes dessas funções, a subordinação às autoridades civis da organização de cerimónias religiosas, que, por regra, se realizam apenas nos "lugares habituais e entre o nascer e o pôr-do-sol", a proibição de símbolos religiosos em lugares públicos, o arrolamento dos bens da Igreja, a atribuição de pensões vitalícias anuais aos padres que à data da proclamação da República exerciam o cargo, a proibição de hábitos ou vestes talares fora dos templos e a manutenção do beneplácito, fazendo depender do Ministério da Justiça a publicação de bulas e pastorais.

A Assembleia Nacional Constituinte consagraria na primeira Constituição republicana, aprovada em 21 de agosto de 1911, a "liberdade de consciência e de crença", "a igualdade política e civil de todos os cultos", garantindo o seu exercício "nos limites compatíveis com a ordem pública, as leis e os bons costumes", assim como a neutralidade religiosa do "ensino ministrado nos estabelecimentos públicos e particulares fiscalizados pelo Estado".

A Lei da Separação e a política anticlerical do regime são amplamente contestadas pela Igreja Católica, conduzindo mesmo ao corte de relações com o Vaticano, em 1913. Mas, também entre os republicanos, surgem críticas à sua aplicação. No entanto, o diploma não sofreria alterações significativas até 1918.

A temática das relações do Estado com a Igreja está sempre presente nas instituições parlamentares republicanas.

Em 1914, realiza-se um extenso debate sobre a revisão da Lei da Separação, anunciada na apresentação do Programa do Governo de Bernardino Machado, em 10 de fevereiro, animado, de acordo com as palavras do Chefe do Executivo, por um "sentimento caroável de pacificação e de clemência que inspirou nobremente a revolução, para sempre abençoada, do 5 de Outubro."

A argumentação dos defensores da lei centra-se no princípio da neutralidade religiosa do Estado, conforme consignado na Constituição; a dos críticos nos excessos do diploma aprovado pelo Governo Provisório.

A 10 de março, Afonso Costa abre a discussão na generalidade sobre a Lei da Separação do Estado e das Igrejas na Câmara dos Deputados, ironizando sobre a sua satisfação em ver chegado o momento em que os acusadores mostrarão as "arestas e indelicadezas" do diploma e atacando as campanhas contra a lei:

"Era preciso abrir um debate profundo para tirar os últimos pretextos às campanhas movidas, não só contra a lei, mas contra a própria República, fazendo da lei uma interpretação propositalmente falsa (…), inventando (…) uma lei de intolerância e de perseguição para a atacar, para anunciar uma paz religiosa que seria fundada nos escombros dessa lei.

Essa campanha não alcançou fundas raízes no país, porque o povo tem sentimentos de patriotismo, de republicanismo e de liberalismo contra os clericais que a levantaram em vão. (…)

A reação religiosa está convencida de que tem a defendê-la muita gente que tem assento nos arraiais republicanos, mas engana-se. (…)

O que se há de provar neste debate é que os católicos estavam mal preparados, e por isso desvairaram ao anúncio da Lei da Separação."

No dia seguinte, Rodrigo Fontinha começa por referir o melindre e a delicadeza da questão, "porque dificilmente se encontrará quem entre nela sem paixão, quem não exagere, pró ou contra, o valor e os direitos das coisas e das pessoas afetas à religião."

Intervindo "como cidadão português, republicano, avesso a todas as tiranias, absolutamente contrário a todos os facciosismos", afirma que a Lei da Separação revela, em alguns preceitos, um propósito "de vexar a Igreja Católica e os seus fiéis, que formam a grande maioria da sociedade portuguesa" e "que parece ter havido a intenção de destruir, com artigos e parágrafos, aquilo que é obra de séculos." Não estando em causa o princípio da separação, considera que a lei de 1911 criou "o maior conflito que tem havido e ainda perdura na sociedade portuguesa, porque ela viu que se legislou, com opinião antecipada, contra o que de mais respeitável existe no coração humano: a crença".

Entre as críticas que apresenta às disposições do diploma, destaca o "exercício do culto por intermédio das associações chamadas cultuais", referindo ainda outras questões como, por exemplo, a proibição de doações destinadas ao culto, as restrições ao uso de vestes talares, a menção das pensões a viúvas e filhos dos padres (que considera "enxovalhante", tendo em conta regime disciplinar do celibato dos sacerdotes católicos), a proibição do ensino religioso nas escolas particulares, a dependência da educação ministrada nos seminários do poder civil, as pensões eclesiásticas e o beneplácito, que entende contrário ao direito constitucional de liberdade de expressão.

Nas sessões de 12, 13 e 16 de março, prossegue o debate, com o Deputado Alexandre de Barros a rebater algumas críticas apresentadas:

"Espalhou[-se] pelo país inteiro e se logrou fazer acreditar que a Lei da Separação era uma lei de perseguição à Igreja, ao catolicismo, às crenças religiosas de tanta gente bondosa e ingénua; assim se conseguiu fazer acreditar que os inventários eram roubos e que as cultuais eram associações contra a lei de Deus, pondo em perigo de infernais penas aqueles que nelas quisessem tomar ou tomassem parte."

A 24 de março, Alberto Xavier entende a lei como a instauração em Portugal de um "regime da verdadeira liberdade religiosa", fundada nos "direitos tradicionais e incontestáveis do Estado e reconhecidos por lei" e que "os seus preceitos sobre a fiscalização e polícia do culto foram inspirados no interesse da ordem pública e da liberdade de todos, e ainda no propósito prudente e patriótico de acautelar a República dos abusos da reação ultramontana e das veleidades da igreja católica que aspira perseverantemente à conquista do poder político."

Os debates prosseguem nos meses seguintes, mas a Lei da Separação do Estado e das Igrejas seria apenas alterada em 1918, sob a Presidência de Sidónio Pais e com o Parlamento dissolvido.

O Decreto n.º 3656, de 22 de fevereiro de 1918, acusa, no seu preâmbulo, o legislador de 1911 de misturar o regime "em contendas de crenças, como se a República do 5 de Outubro fundasse uma religião que tivesse um credo hostil a qualquer outra já existente" e retira da lei as disposições mais controversas para a Igreja Católica, abrindo caminho para o reatamento das relações diplomáticas com o Vaticano.

Seis anos depois, a 20 de junho de 1924, o Ministro da Justiça, José Domingues dos Santos, apresenta uma proposta na Câmara dos Deputados para anular o decreto de 1918:

"A lei de 20 de Abril de 1911, longe de envolver o regime em questões religiosas, procurou, honrada e inteligentemente, defender à Nação do cerco, cada dia mais apertado, que variados intuitos confessionais vinham pondo às suas liberdades primárias. (…)

(…) as alterações formuladas no decreto datado de 22 de Fevereiro de 1918 bem cedo provocaram vivos clamores da opinião pública para que se restabelecesse, em sua previdente contextura, a lei basilar do regime dentro das instituições políticas nacionais (…).

Já não é apenas a República que está ameaçada.

É a própria liberdade de consciência."

A questão religiosa, em particular no respeitante à relação entre o Estado e a Igreja Católica, mantém-se na ordem do dia do Parlamento até ao seu encerramento na sequência do Golpe Militar de 28 de Maio de 1926, que põe termo ao período da I República.