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Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva na Cerimónia de abertura do Colóquio «Ucrânia 365 dias depois»

1.
Começo por fazer duas saudações especiais.

A primeira é ao Encarregado de Negócios da Embaixada da Ucrânia, uma embaixada com que temos trabalhado muito bem, ao longo de muitos anos, e cada vez mais, à medida que a comunidade ucraniana residente em Portugal foi, também ela, crescendo; e com que temos trabalhado intensamente, nestas circunstâncias muito dramáticas, em que foi necessário usar também os bons ofícios da Embaixada da Ucrânia para acolher pessoas deslocadas, em resultado da invasão russa do território ucraniano, e acertar as condições de apoio, assistência e a relação bilateral entre Portugal e a República da Ucrânia.

A segunda saudação especial que queria fazer é ao Grupo Parlamentar de Amizade entre Portugal e a Ucrânia. A dimensão parlamentar das relações bilaterais é muito importante, porque traz aquilo que a relação que fica apenas entre governos não consegue trazer, que é a diversidade. No Grupo Parlamentar estão representados os diferentes partidos políticos e, portanto, a relação bilateral cresce, na medida em que se torna claro que ela não depende das afinidades políticas, ideológicas ou partidárias do momento, mas de coisas bastante mais profundas, que são a relação entre os Estados, a relação entre as culturas e a relação entre os povos.

Esta sessão complementa bastante bem o conjunto de atividades que temos feito na Assembleia da República ao longo deste dia, porque, como o Presidente do Grupo Parlamentar de Amizade já disse, acrescenta a dimensão do público, acrescenta a possibilidade de não apenas falarmos entre nós, mas de falarmos com os nossos públicos, e em particular com as cidadãs e os cidadãos ucranianos e luso-ucranianos, e as associações que aqui estão presentes. Ao mesmo tempo, beneficiaremos de testemunhos muito importantes, designadamente de jornalistas e de investigadores, de pessoas que, a diferentes títulos, têm um conhecimento próximo e profundo do que acontece hoje na Ucrânia.

Para não me repetir, queria fazer incidir esta intervenção de abertura em dois aspetos que me parecem muito importantes, sobretudo num Parlamento.

O primeiro tem a ver com a «coligação» — coligação informal, mas efetiva — internacional de condenação da agressão russa e de apoio à Ucrânia; e com o trabalho político-diplomático que temos feito e que temos de continuar a fazer, para consolidar essa coligação internacional e para a alargar. A condenação política ou o isolamento diplomático são instrumentos nas relações internacionais tão poderosos e, às vezes, até mais poderosos do que as sanções económicas ou outro tipo de respostas. E há alguma coisa que se pode e deve dizer a esse propósito, e eu gostaria de dizê-la.

O segundo aspeto que queria focar é o aspeto da retórica política, porque a Ucrânia tem sido vítima não apenas de bombardeamentos, de ocupação, de alvejamento selvagem de infraestruturas e objetivos civis — e, com a Ucrânia, nós temos sido vítimas disso —, mas tem sido também vítima de uma retórica política, de um discurso político muito, mas mesmo muito, perigoso, e nós devemos também combater esse discurso político.

 

2.
Assim, quanto ao primeiro aspeto, o trabalho político-diplomático que ainda é preciso fazer, a União Europeia fez ontem um tour de force, porque a Assembleia-Geral das Nações Unidas, reunida em sessão especialmente convocada pelo Secretário-Geral, discutiu mais uma resolução de condenação da Rússia e de apoio à Ucrânia.

A União Europeia, ao contrário do que é habitual, que é os países fazerem-se representar através dos seus embaixadores, mobilizou o nível político e vários ministros ou secretários de Estado dos Negócios Estrangeiros intervieram na Assembleia-Geral das Nações Unidas; e o Alto Representante da União para a política externa e de segurança, Josep Borrell, interveio no Conselho de Segurança em nosso nome.

Foi um tour de force que deu resultados, mas que é necessário. Porquê? Ontem, 141 países votaram a favor da resolução de condenação da Rússia e de apoio à Ucrânia, mas o que importa é olhar não para esses 141 países que votaram a favor, mas para os cerca de 30 que se abstiveram.

Há, evidentemente, seis ou sete — ontem foram sete — que votam a favor da Rússia, mas não vale a pena perder tempo com eles, porque são satélites do Kremlin: Bielorrússia, Coreia do Norte, Síria, Irão… Não vale a pena perder tempo com eles. São nossos adversários, como a Rússia hoje é.

Mas aos 30 países abstencionistas, muitos deles da África, da América Latina e alguns da Ásia, alguns países muito importantes, como a África do Sul ou a Índia, a esses devemos prestar muita atenção, até porque temos instrumentos para os ir convencendo da justeza da nossa posição.

Quando falamos com eles, a primeira resposta que normalmente temos — e, às vezes, a segunda, a terceira e a quarta — é esta: «Mas essa guerra não é nossa. Essa luta não é nossa, isso é uma guerra lá dos europeus, é um problema entre os europeus. Para que é que eu, africano, eu, latino-americano, que ainda por cima, do ponto de vista económico, estou tão dependente de potências como a China — e alguns países até, do ponto de vista político, da própria Rússia —, me hei de meter nessa guerra que não é minha e de que eu apenas sou vítima, na medida em que a guerra provocou escassez de bens alimentares, escassez e rutura do mercado internacional de fertilizantes, a alta de preços, e de tudo isso eu, africano, eu, latino-americano, sofro especialmente? Porque é que me devo meter num assunto que não é meu?»

Exatamente, o que temos de procurar mostrar é que esse é um assunto de todos. Independentemente do caso em concreto, há aqui uma ação não provocada, não justificada e totalmente ilegítima, que, se tiver vencimento, porá em causa as condições nas quais nós, os diferentes países do mundo, as 194 nações que fazem parte das Nações Unidas, coexistimos.

Se aceitarmos que as fronteiras internacionalmente reconhecidas podem ser alteradas pela força, se aceitarmos que vamos outra vez admitir que a conquista militar, a conquista de um território, é um título de direito, se vamos outra vez aceitar que regressamos à velha teoria das esferas de influência e, portanto, há uns países que são totalmente livres — supostamente, as superpotências — e o resto não é inteiramente livre, porque está sujeito aos vetos, aos interesses ou às decisões dessas superpotências, se aceitarmos qualquer uma destas coisas, a ordem internacional que fomos construindo, a partir da Segunda Guerra Mundial, estará em causa.

Essa ordem foi a que permitiu a independência, primeiro, e o desenvolvimento das nações do chamado «Sul global». Portanto, elas têm mesmo interesse direto em que o direito internacional prevaleça, os responsáveis pelas agressões sejam levados à justiça e a paz seja reposta da única forma que ela pode ser reposta, com o fim da agressão por parte de quem agride e com o fim da ocupação por parte de quem está a ocupar.

Depois, a quinta e a sexta respostas que, muitas vezes, ouvimos, sobretudo em África, é uma questão de lealdade. Muitas vezes, as pessoas dizem-nos: «Mas não podemos ir contra a Rússia, porque a União Soviética nos apoiou nas nossas lutas pela independência».

É preciso, também aí, dizer, explicar e convencer os nossos interlocutores de que não estamos num exercício sobre a história do século XX. Estamos perante uma circunstância muito concreta, que se esgota nela mesma: a agressão e a necessidade de conter a agressão. Não estamos a honrar ou a desonrar a história do século XX.

Aliás, a razão primeira pela qual um país que conquistou, muitas vezes pela força das armas e com o heroísmo do seu povo, a independência, nos anos 50, 60 e 70 do século XX, deve apoiar a Ucrânia é porque, justamente, a Ucrânia está a lutar, de armas na mão, pela sua independência. Portanto, há, de facto, afinidade entre os países que tanto penaram para serem independentes e poderem decidir livremente o seu destino e a Ucrânia, que hoje pena por manter a sua independência e o seu direito de decidir livremente o seu destino.

Assim, o que queria dizer é que, também a dimensão parlamentar, é muito importante continuarmos com este trabalho de consolidação e alargamento da grande coligação internacional em apoio da Ucrânia.

Não estamos, ao contrário do que diz o Presidente Putin, perante uma guerra entre o Ocidente e a Rússia. A Rússia está a fazer uma guerra é ao direito internacional, é às Nações Unidas como tais e ao conjunto da comunidade internacional. E esse ponto é muito importante para mantermos a pressão política e diplomática sobre o agressor.

 

3.
O segundo aspeto que queria considerar é o seguinte: nós — em particular nós, os parlamentares — devemos combater ativamente a retórica política que hoje sai do Kremlin, porque essa retórica política baseia-se em preconceitos e axiomas que não podemos aceitar.

Em primeiro lugar, baseia-se numa ideia de prisão da história. É como se estivéssemos condicionados à história. Toda aquela linguagem de Vladimir Putin sobre os supostos territórios históricos russos, toda aquela exaltação ultranacionalista em favor da oportunidade de restaurar o orgulho do império russo, nada disso tem fundamento na realidade das coisas, nada disso tem fundamento na história das coisas e tudo isso é muito perigoso.

A própria história tem mostrado que, quando lutamos na base das exaltações nacionalistas do passado, a capacidade de chegarmos a compromisso, a capacidade de olhar para o futuro diminui muitíssimo.

Depois, também não podemos pactuar com esta lógica discursiva da ameaça constante que se imputa ao outro.

A ideia de que a Rússia é uma pátria sempre cercada, uma terra-mãe invejada pelos ocidentais e que os vizinhos pretendem aniquilar, a ideia de que o Presidente Zelenskyy possa ser uma espécie de avatar de Napoleão Bonaparte (ou um instrumento nosso, se formos nós o Napoleão), que continuamos a querer conquistar Moscovo, essa ideia não tem nenhum fundamento, mas é uma ideia extremamente perigosa. É perigosa, sobretudo, quando beneficia, como infelizmente na Rússia beneficia, da bênção — a palava certa pode ser mesmo esta, «bênção» — de estruturas hierárquicas religiosas que acrescentam a essa exaltação nacionalista uma exaltação religiosa, não menos perigosa.

Ao mesmo tempo, ou simetricamente, a ideia de que um poder pode ameaçar outros, a ideia de que o Presidente Putin possa ser ungido da missão histórica de combater o que ele chama «a degradação ocidental» — aliás, num pot-pourri de argumentos que vão desde a geopolítica até às questões de moral sexual ou comportamento privado —, essa ideia de que haverá alguém, em algum sítio, investido da missão histórica de nos corrigir a todos, é uma ideia que não podemos aceitar, porque é incompatível com a democracia, com a pluralidade, com a diversidade das pessoas, das aspirações, dos projetos, das características e dos valores das pessoas.

E, finalmente, esta ideia de que não tenhamos verdadeiramente saído do século XX, de que o mundo se definiria ainda em esferas de influência e que aqueles que caíssem numa esfera de influência teriam uma soberania limitada, uma soberania diminuída: isso é absolutamente incompatível com a maneira como a Guerra Fria terminou pacificamente, com a assunção de que cabia a cada um dos Estados soberanos, representados pelos seus Parlamentos, os seus Presidentes e os Governos, decidir livremente qual era a sua geopolítica.

 

4.
Precisamos muito de contrariar esta retórica política, por uma razão simples, e assim termino: porque, ao mesmo tempo que precisamos de conquistar mais os nossos amigos africanos e latino-americanos que ainda pensam que a guerra hoje é só da Europa e não é com eles — e temos de os convencer de que há uma guerra que diz respeito a todos —, precisamos também de conversar mais com o povo e a sociedade russos, pois a Rússia não é para nós outra coisa que não uma grande nação europeia e do mundo.

Não temos nenhum problema com a sociedade, o povo, a população, a história, a literatura e a cultura russas. Temos é um problema com esse abastardamento da história e da alma russas, que é pensar que a única expressão possível da alma e da história russas seja um novo, obsoleto e inaceitável império russo.

Abusando da vossa paciência, só quis chamar a atenção para a necessidade de trabalharmos mais, nós todos, nestas duas dimensões: na dimensão diplomática e internacional, falando sobretudo para o Sul global; e na dimensão do discurso, falando também para os russos - esses que são, afinal de contas, também vítimas de Putin.