Nesta primeira participação numa sessão solene de abertura do ano judicial, na qualidade de Presidente da Assembleia da República, começo por saudar todas as autoridades e órgãos judiciais, a quem asseguro a melhor cooperação institucional, no respeito escrupuloso pelas competências próprias e impulsionando a convergência de esforços para a administração célere da justiça.
Nos termos constitucionais, a garantia do acesso de todos ao direito e aos tribunais, assim como ao patrocínio judiciário, a independência dos tribunais, a autonomia do Ministério Público e a ação da Provedora de Justiça representam, entre outros, fatores essenciais para a prossecução de uma das tarefas fundamentais do Estado, qual seja "garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático".
Citarei novamente a Constituição da República Portuguesa para assinalar a comum vinculação que o Parlamento e que os Tribunais incorporam face ao conjunto dos cidadãos: de um lado, "os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo"; do outro lado, "a Assembleia da República é a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses". No exercício das respetivas missões, assumindo o Parlamento, além da fiscalização e escrutínio dos atos do Governo e da Administração, o poder legislativo e cumprindo aos tribunais o poder de julgar, ambos estes órgãos de soberania, obedecendo à regra da separação e interdependência dos poderes, servem a cidadania.
A ideia matricial de vinculação à cidadania é o que gostaria hoje de enfatizar, para retirar, das suas várias consequências, uma que me parece particularmente atual.
No Estado de direito, a clareza há de ser uma virtude essencial da lei, a qual, elaborada pelos legisladores, interpretada e aplicada pelos magistrados judiciais, os magistrados do Ministério Público e os advogados, deve ser bem compreendida por todos, nomeadamente e tanto quanto possível, pelos titulares dos direitos e liberdades, isto é, as pessoas.
Falo de clareza em sentido pleno, que a associa a rigor e a simplicidade. As normas da lei devem almejar a exatidão na definição dos propósitos que prosseguem, na explicitação dos fundamentos que invocam, na afinação das regras e sanções que estatuem. E devem afastar-se de quaisquer complicações desnecessárias, intervindo onde seja estritamente indispensável agir juridicamente e na medida precisa da indispensabilidade, não pretendendo esgotar toda a regulação social e, pelo contrário, deixando espaço de respiração à rica diversidade das interações que têm curso nas sociedades modernas.
Neste sentido, creio adequado dizer-se que a clareza da lei é um requisito da sua boa aplicação, designadamente pelos tribunais, em todos os ramos do direito. Uma lei enxuta, concisa, legível, e peças processuais igualmente claras, além de alinhadas com o nosso tempo, são condições, se não necessárias, pelo menos muito favoráveis para que a justiça, administrada em nome do povo, seja inteligível pela opinião pública e seja eficaz para assegurar a qualquer pessoa a possibilidade de a ela recorrer, para defender direitos e interesses legalmente protegidos.
A clareza das normas é também um elemento essencial da segurança jurídica indispensável ao funcionamento da economia e ao desempenho da administração pública. Leis e decisões judiciais claras representam um meio poderosíssimo para induzir a confiança nos contratos, agilizar procedimentos e diminuir burocracias, prevenir e combater a corrupção, facilitar o acesso à justiça e imprimir celeridade na sua administração. Geram, além do mais, substanciais reduções dos custos de contexto na realização de investimentos e enormes poupanças na despesa das famílias, das empresas e do Estado.
Temos mesmo de avançar, em conjunto, no esforço de tornar as leis mais rigorosas, mais simples e mais compreensíveis. Em Portugal como na Europa, vários programas submetidos ao propósito de "legislar melhor" têm produzido já melhorias concretas. Lembre-se, apenas como exemplo, o sucesso obtido na operação de limpeza do nosso ordenamento jurídico de inúmeros diplomas já caducos.
Mas muito resta ainda por fazer. O que eu quero hoje, aqui, dizer a todos os operadores judiciários, é que me empenharei para que o Parlamento faça, nesta tarefa de todos, a sua parte – que, enquanto a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses, na pluralidade e diversidade dos interesses e ideias, e enquanto o legislador por excelência, o Parlamento produza leis claras, tão simples quanto possível, compreensíveis por todos.
O que não é tarefa pouca, ou menor, bem pelo contrário. O poder legislativo deve ponderar cuidadosamente a pertinência, o impacto e a eficácia das leis que entende dever aprovar, de modo a evitar normas redundantes, impertinentes ou desnecessárias. Deve distinguir nitidamente o que é matéria fundamental e, por conseguinte, constar da lei e o que não é, e há de ser deixado para os diplomas de regulamentação. Deve acautelar bastante mais a qualidade da redação das leis, de maneira a evitar a inclusão de normas deficientes, obscuras ou contraditórias entre si, que por isso mesmo possam permitir interpretações abusivas, contrárias aos propósitos pretendidos, ou trazer incerteza e dificuldades injustificadas à atividade das pessoas singulares ou coletivas e ao trabalho de magistrados e advogados.
Naturalmente, esta não é a única área relevante de convergência e cooperação interinstitucional entre o Parlamento e os operadores judiciários. Muitas outras poderia e acaso deveria referir, tão densa e profícua é a interação entre a Assembleia da República, a Provedora de Justiça, os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público, o Tribunal de Contas e outros órgãos judiciais. Mas creio poder dizer que a importância da questão da clareza e do rigor jurídico, no ambiente social e económico que vivemos, merece que a singularize.
Exprimindo este propósito de contribuir para a compreensibilidade das leis, a começar, naturalmente, por todos os operadores da justiça, mas passando também pelas pessoas comuns, estou certo de que posso falar em nome de todas as senhoras e senhores Deputados.
Muito obrigado.