Bem-vindo à página oficial da Assembleia da República

Nota de apoio à navegação

Nesta página encontra 2 elementos auxiliares de navegação: motor de busca (tecla de atalho 1) | Saltar para o conteúdo (tecla de atalho 2)

Saramago convidando a viajar | Intervenção na sessão inaugural da Cátedra José Saramago da Universidade Federal do Paraná, Curitiba

6 de maio de 2022 


1.

Em 1981, saiu a Viagem a Portugal, que o Círculo de Leitores tinha encomendado ao escritor José Saramago. Um percurso pessoal pelo território português, na melhor tradição do Guia de Portugal lançado por Raul Proença, das investigações antropológicas e geográficas de um Jorge Dias ou de um Orlando Ribeiro ou da literatura de um Aquilino Ribeiro. (Em 2022, o jornalista Fernando Alves recria a viagem de Saramago, numa espantosa reportagem radiofónica de grande fôlego, para a emissora TSF).

Se se pudesse falar do programa com que o então autor de Levantado do Chão (saído em 1980) procedeu à reinterpretação e apropriação do convite recebido e aceite, os seguintes elementos poderiam talvez caracterizá-lo. Primeiro, ser uma deambulação pessoal e solitária, de escritor questionando-se a si próprio sobre o seu país e a sua relação com ele. Segundo, ser a prática de um ver de perto, a observação demorada e local do que só à segunda ou terceira vista pode ser descoberto, o que exige tempo e minúcia indispensáveis para que o acaso surpreenda e o invisível se apresente. Terceiro, implicar um esforço crítico, interrogando e desconstruindo as ideias feitas que o senso comum ou os discursos mais ou menos oficiais foram tecendo sobre o que é este povo aqui, o que ali mais enobrece aquela vila, cidade ou região, que ícones ou emblemas podem ser acolá exibidos. O que, por sua vez, implica, quarto elemento, uma escolha radicalmente diversa de perspetiva, mirando de baixo para cima e de dentro para fora, ou de qualquer outro modo instalando um ponto de vista que preze e evidencie o contributo das mulheres e dos homens comuns e o seu labor quotidiano: o seu trabalho, a sua linguagem, as suas crenças e falas, a sua visão do mundo. Quinto, uma comunicação direta, pausada e dialogal, ao modo que as circunstâncias propiciarem, mas pretendida e procurada, com as gentes do local, o padre da paróquia, o cuidador dos arquivos, o estudioso das curiosidades ou, simplesmente, a pessoa que se encontra e, em especial, se carregar experiência, disponibilidade, isto é, saber. Em sexto e último lugar, dizer tudo isso em boa literatura, usando da imaginação quando ela for indispensável para conhecer e revelar melhor as coisas e, em particular, cursos alternativos para o que já passou, para o que está agora sucedendo ou para que vai acontecer no próximo futuro, e retirando da língua portuguesa todas as potencialidades que ela encerra, e que derivam tanto do falar de hoje como do falar de outrora, tanto do uso culto e erudito como do falar popular.

Na Viagem a Portugal, este programa concretiza-se, como o título indica, ao modo de viagem: uma travessia por montes e vales, rios e costas, aldeias e urbes, campos e florestas, monumentos e paisagens, aglomerações e estradas; ao modo de uma reportagem imersiva, uma intersecção entre jornalismo, etnografia e literatura. Uma viagem a, e não em, Portugal: como se se tratasse de um país estrangeiro, uma novidade a descobrir e explorar, como se o programa exigisse a instauração de uma alteridade sem a qual não funcionaria, ou só canhestramente funcionaria; como se esse Portugal fosse uma realidade-outra (e, sendo-a, outra por relação a quê, ou a quem – ao escritor, aos leitores, às representações hegemónicas nas instituições e/ou no espaço público?). Como se não fossem só os estrangeiros, mas também, e talvez sobretudo, os nacionais que devessem ser convidados a conhecer, e muitos deles a desconhecer o que davam por sabido para poderem enfim reconhecer as terras e gentes que permaneciam, sob muitos aspetos, ignoradas e, portanto, desvalorizadas, excluídas.

Temos, pois: viagem – deambulação organizada, mas deixando ensejo para aventurar-se por veredas imprevistas ou promissoras – a um território – uma inscrição física no espaço e no tempo, resultado do esforço humano na longa duração e da sua dialética com a natureza – amplamente desconhecido. E cujo conhecimento nos há de requerer vontade e disponibilidade, desejo mesmo, para atravessamentos em múltiplas direções e ocasiões, seja ao longo da geografia de hoje, seja ao longo da história passada.

Eu, simples leitor de José Saramago, pergunto-me (e, leigo em estudos literários, pergunto aos especialistas que trabalham na cátedra que hoje se inaugura) se esta ideia que retiro da Viagem a Portugal poderia ser generalizada, e em que condições; se ela poderia ser também uma chave para abrir o conjunto da ficção do autor à nossa compreensão de leitores engajados em seu país e circunstância. Se seria justo alvitrar-se que, nos seus romances, Saramago múltiplas vezes nos convida a viajar a Portugal, percebendo que, para entendê-lo melhor (e situarmo-nos melhor nele), haveremos de tomar um quanto de balanço, instalando um pouco de distância e estranhamento, como se fosse terreno por desbravar ou mar por descobrir, e perder tempo por caminhos os mais diversos, para, calcorreando, tomar conhecimento, quase táctil, dele, ganhando assim consciência e saber, que para isso é que se faz bem em perder tempo.

 

2.

Viagens, que só o plural teria aqui sentido. Mas segundo que roteiro?

Primeiro: rasando o chão. Em As pequenas memórias, Saramago evoca comovido o último gesto de seu avô, que, pressentindo a morte, se despediu uma a uma das árvores do seu quintal, abraçando-as. Nessa relação íntima, física, existencial com cada pedaço de chão, nessa comunidade que os homens e as mulheres tecem com a natureza, os animais e os frutos dos labores de todos – os ofícios, os alimentos, as paisagens, as habitações, os instrumentos, as povoações, as crenças, os grupos e organizações – se joga o essencial não só do nosso ser aqui, situado e circunstanciado, como da nossa capacidade de interpretá-lo e transcendê-lo. Talvez nos ajudasse a metáfora vegetal da árvore: raízes profundas, que prendem à terra, tronco forte sustentando ramagens, seiva que alimenta, folhas que respiram, flores e frutos que amadurecem, podendo ser cheirados e comidos, tudo isso poderia utilmente invocar esta tomada de partido pelo chão, isto é, pela terra, pelo quotidiano, pelo comum, pelas gentes, pelos tão desapossados de favores e privilégios quanto enriquecidos de trabalho e sonho, que caracteriza soma considerável dos romances de José Saramago. Para se levantar do chão, é preciso partir do chão – e afirmar a força do chão, e dos coletivos que em torno do chão se formam – face aos opressores e aos mecanismos de opressão (Levantado do chão, 1980). O motivo da construção do convento de Mafra não poderia ser mais fútil – D. João V agradecendo aos céus a graça de um filho; foi o trabalho, isto é, a arte e a canseira dos serventes, mesteirais e artífices, e a capacidade de imaginar novas possibilidades, que aproximavam, no romance, Bartolomeu de Gusmão, inventor da passarola, e Blimunda, capaz de ver as vontades dos outros e resgatar à Inquisição seu Baltazar, que o redimiram; e, por isso, o Memorial do Convento (1982) é menos do convento e mais dos construtores do convento.

Portanto, o primeiro passo do roteiro das viagens saramaguianas seria ir rasante ao chão.

Sobre este chão se ergue a fábrica social portuguesa, o tecido que, no espaço e tempo, comunidades vão fazendo nascer e consolidar. Os soldados que ajudam D. Afonso Henriques a conquistar Lisboa, que a proximidade ocasional dos Cruzados afinal não foi, em razão da sua cupidez, de préstimo – na versão alternativa imaginada pelo revisor Raimundo Silva (História do cerco de Lisboa, 1989). O cornaca que conduz o elefante oferecido por D. João III ao arquiduque de Áustria seu primo, e é afinal o primeiro responsável pelo êxito da aventura (A viagem do elefante, 2008). Os jornaleiros que da terra tiram alimento, e não os latifundiários que a sequestram (Levantado do chão).

Para deambular por Portugal e conhecer Portugal a partir das gentes de baixo e do chão que formam é preciso investi-los na condição de sujeitos da história, sujeitos efetivos ou potenciais da história. É preciso reconhecer e proclamar a sua dignidade: mesmo que pobres, mesmo que analfabetos, mesmo que situados à margem ou por baixo das hierarquias sociais, eles têm ânimo, importa é ter os olhos de Blimunda para o ver; eles têm engenho, perícia, saber fazer e, por isso, capacidade criativa (e também por isso é que o artífice Baltazar e o artista Scarlatti são afinal próximos); eles trabalham, fazem as casas, as roupas, as refeições, a educação dos filhos, os cuidados uns dos outros; eles pensam, creem, querem, amam, sonham; eles têm voz, mesmo quando não a ouvimos, porém deveríamos ouvi-la.

Segundo passo, pois, do roteiro de viagem de Saramago: tratar as pessoas comuns como sujeitos.

No seu sentido mais lato, de feição antropológica, cultura é uma palavra adequada para designar esse conjunto de maneiras de ser, fazer e agir. E se considerarmos as relações que se estabelecem, ao longo da história, entre uma cultura e um território, chegaremos a uma definição útil, no seu pragmatismo, de nação. Isso significa que as escolhas de Saramago em termos de território – a terra portuguesa na sua extensão chã quotidiana – e de cultura – o valor dos de baixo, das gentes comuns – hão de repercutir-se num entendimento, também singular e coerente, do que seja a nação portuguesa.

Conforme a uma distinção corrente, na sua geração e filiação ideológica, entre a pátria que é nossa e as ameaças externas que a afligem ou agridem. Os latifundiários alentejanos são (em Levantado do chão) convenientemente associados a antigos senhores estrangeiros a quem o rei medieval havia entregue terras, por sua vez convenientemente ridicularizados com nomes de ressonâncias estrangeiras, como Lambertos e Dagobertos. Estrangeiros são os Cruzados que, afinal, se teriam recusado (na versão imaginada pelo revisor) a ajudar D. Afonso Henriques, o qual, por conseguinte, contou com os nacionais para o êxito da conquista de Lisboa (História do cerco de Lisboa). A seu modo, estrangeira é essa Europa a que as elites querem incorporar Portugal e Espanha, mas que as trata como periféricas, o que por sua vez cria laços de fraternidade ibérica que o romancista pôde recriar como corte e deambulação para recolocação da península, feita Jangada de pedra (1986), no Atlântico Sul, entre África e América Latina.

Em consequência, terceiro passo do roteiro saramaguiano: as nações erguidas de baixo para cima pelos sujeitos.

O ponto essencial para a possibilidade de viajar a Portugal de forma mais densa e abrangente – e empática – do que a dos guias turísticos, dos livros de história do ensino secundários e dos discursos oficiais nas efemérides nacionais, não está, porém, nesta contraposição nós/outros que, em certa medida se encontra necessariamente associada a qualquer abordagem em termos de nação: sua consolidação ao longo da história, sua singularidade no concerto das nações. Penso que, se quisermos acompanhar Saramago, o ponto essencial está no questionamento da história, ou da doxa estabelecida a propósito da história, ou da representação ou representações hegemónicas acerca de quem somos, qual a nossa cultura, qual a nossa linhagem, qual o nosso património, qual a nossa memória, qual a nossa identidade. Está na vontade e na capacidade de questionar. A partir dos níveis baixos ou intermédios das hierarquias, certamente, questionar. Inverter os termos, contrariar os pressupostos, operar outras deduções.

Daí a sucessão de perguntas, provocações em forma de perguntas e perguntas feitas provocações, que ligam como um fio parte considerável da ficção do Nobel português. E se a maldade estiver do lado de Deus e não do lado dos seres humanos (O Evangelho segundo Jesus Cristo, 1991; Caim, 2009)? Se Judas tivesse sido o mais fiel dos discípulos, não o traidor? E se D. Afonso Henriques se tivesse visto sozinho na conquista de Lisboa? E se a Península se separasse da Europa, em vez de se integrar nela? E se as pessoas se recusassem a escolher entre alternativas que se mimetizam e votassem maciçamente em branco (Ensaio sobre a lucidez, 2004)? E se Ricardo Reis não tivesse razão, se fosse impossível ao sábio contentar-se com o espetáculo do mundo, porque o mundo penetra-nos e não podemos fingir que o ignoramos sem trair a nossa própria consciência (O ano da morte de Ricardo Reis, 1984)?

Estas perguntas resgatam a dignidade dos esquecidos da história, obrigam-nos a incorporar as suas perspetivas – e assim enriquecem a história, isto é, a cultura, o território, as comunidades que formamos. Multiplicando os pontos de vistas, alargam os horizontes. E, como dizia Pessoa, vendo-se mais, o tamanho fica maior. Fazer a viagem a Portugal usando como roteiro a exploração dessas múltiplas perspetivas, permite-nos conhecer – e saborear – melhor Portugal.

O quarto passo do roteiro seria, assim: rever, re-visar a história.

Certo. Mas não suficiente. De todo o conhecimento creio poder dizer-se que é enlace de porquês. Porque aconteceu isto, porque aquilo é assim, porque isto e aquilo estão relacionados, em que tipo de relação, etc. Mas, na sua especificidade, a literatura é outra coisa: é indagar porquê a partir da imaginação de outros cursos, de outros quês: porque foi isto e não aquilo, que sucederia se fosse essoutro que poderia ter sido, ou que poderíamos querer que tivesse sido, ou que poderíamos imaginar ter sido ou vir a ser, e não o que foi, ou que pensamos que é ou que foi.          

O "não" aposto pelo revisor Raimundo Silva, a visão reveladora de Blimunda, a humanidade de Jesus, a cegueira moral estendida à cegueira física de todos menos uma mulher (Ensaio sobre a cegueira, 1995), o combate à pobreza em vez do elogio da pobreza (A segunda vida de Francisco de Assis, 1987), a comoção e o engajamento de Ricardo Reis – são outras tantas possibilidades atiradas contra nós, leitores, para nos inquietarem, para nos obrigarem a mudar o registo do pensamento, para nos proporem outros itinerários numa viagem que, então, não se ficará, apenas, por este ou aquele país concreto, mas será peregrinação ao fundo de nós mesmos. Ao fundo de cada um e cada uma de nós. À nossa condição humana universal.

 

3.

Falando no Brasil, para um público brasileiro, eis, portanto, o convite que gostaria de deixar. Usem e abusem de Saramago e da enorme vantagem de lê-lo e apreciá-lo sem necessidade de tradução.

Para servir de guia numa eventual próxima visita vossa a Portugal, um guia que lhes explicará que, para conhecer bem Portugal, mister se torna ignorar ideias feitas e explorar todos os caminhos, desde logo os mais humildes.

Mas, também e sobretudo, para servir de inspiração – melhor dizendo, provocação – para, no miolo mesmo dos seus livros, descobrir e percorrer o Portugal que verdadeiramente importa.

E ainda mais: para que tal viagem, em vez de acantonada num território físico administrado por um Estado e delimitado por fronteiras, seja o mais universal possível – por ser direcionada para o âmago (a alma, a consciência, a vontade) de cada leitora e cada leitor.

Dizia Montaigne que a palavra pertence pela metade a quem a diz e pela metade a quem a ouve. Saibamos honrar, na metade que nos cabe como leitores, a metade que Saramago, como autor, nos ofereceu para, com a nossa, formar uma unidade. Uma unidade que nos diga alguma coisa.

Sacudindo-nos.