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Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na Sessão Solene Comemorativa do Bicentenário da Aprovação da Constituição de 1822




Senhor Presidente da República,
Senhora e senhores Presidentes dos Tribunais Superiores,
Senhoras e senhores Ministros,
Autoridades civis, militares e religiosas,
Senhor representante do Corpo Diplomático,
Ilustres convidadas e convidados,
Caras e caros concidadãos,

Senhoras e senhores Deputados,

Reunimo-nos em sessão solene para comemorar o bicentenário da aprovação da Constituição de 1822, elaborada e aprovada pelas Cortes Constituintes eleitas em dezembro de 1820. Foi a primeira Constituição portuguesa, elaborada e aprovada por deputados escolhidos, também pela primeira vez, em eleições gerais, que estabeleceu, ainda pela primeira vez, a noção de cidadania, a soberania da Nação, o regime de liberdades individuais e os princípios do governo representativo. Motivos de sobra para que a Assembleia da República, sob o impulso do Presidente Ferro Rodrigues, tenha decidido realizar um programa de comemorações, coordenado pelo Prof. Guilherme Oliveira Martins, aqui presente, a quem agradeço a dedicação benévola e cumprimento pelos resultados. O que é naturalmente extensivo aos demais membros da comissão organizadora e aos serviços competentes do Parlamento. 

O programa comemorativo assenta em quatro eixos fundamentais. 

O primeiro é o incentivo ao estudo da nossa história constitucional e parlamentar, bem como das circunstâncias políticas e institucionais que a marcaram, através da organização ou apoio a colóquios e conferências científicas e da encomenda de obras a historiadores e juristas de indiscutível competência. 

O segundo eixo é a promoção do conhecimento público, quer através da edição de tais obras, quer através da divulgação dos factos e protagonistas, por via de espetáculos teatrais, concertos, documentários e exposições, das quais destaco a que hoje mesmo será inaugurada, neste edifício. 

O terceiro eixo é constituído por iniciativas de preservação e consagração memorialística, na toponímia, na filatelia ou na lapidária, de que me permito singularizar a próxima evocação da realização das Cortes no local em que decorreram, o Palácio das Necessidades. 

E o quarto eixo é este que agora nos reúne, a comemoração institucional e solene da Constituição e do constitucionalismo.

Já em 1921 o Congresso da República se tinha reunido em sessão solene para assinalar o centenário da primeira reunião das Cortes Constituintes. Comemora agora a Assembleia da República os duzentos anos da aprovação da Constituição que elaboraram, e é simples justificar a similitude das iniciativas: o alvor do liberalismo político em Portugal é evocado pelos seus mais diretos e legítimos herdeiros, a Primeira República e o Estado Democrático. E, por isso, não é apenas a Assembleia da República que homenageia os constituintes do vintismo, mas todos os órgãos de soberania ¬– o Presidente da República, o Governo, os Tribunais - que nos honram com a sua presença, assim como o conjunto da sociedade portuguesa. 

A evocação que realizamos é um ato institucional e político. A determinação da factualidade dos acontecimentos de 1820-1823, a sua explicação no contexto nacional e internacional, a elucidação dos seus efeitos e consequências, tudo isso é matéria de história e trabalho de historiadores, que devem fazê-lo em total liberdade intelectual, sem nenhum constrangimento ou orientação exógena. A nós cabe, outrossim, refletir sobre os laços que nos unem à primeira Constituição portuguesa e ao regime que ela inaugurou; cabe-nos, com os olhos de hoje, revisitar o passado que, estando na genealogia do presente, nos pode ajudar a compreender melhor este nosso presente e o que podemos e devemos fazer dele.

Sugiro que o façamos, para sermos breves e precisos, do ponto de vista definido pelos dois artigos iniciais da Constituição que nos rege, a de 1976. Eles caracterizam a República Portuguesa como um Estado soberano, baseado na dignidade humana e na vontade popular; como um Estado de direito democrático, respeitador e garante dos direitos e liberdades fundamentais, assente no pluralismo de expressão e organização e na separação e interdependência dos poderes; empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.

Deste ponto de vista, torna-se óbvio o que devemos ao primeiro constitucionalismo liberal: devemos-lhe a ideia de soberania nacional, o princípio representativo, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa, a igualdade perante a lei, a emergência de um parlamento com poderes próprios e legitimação eleitoral, o direito de petição, em suma, a passagem de súbditos a cidadãos. Isso, estabelecido numa Constituição escrita, elaborada por constituintes eleitos pelos cidadãos, marca uma formidável rutura com o Antigo Regime e o início de uma conceção liberal da comunidade política que é, em todos estes aspetos, a nossa. Nesse sentido, sim, nós, os democratas da Constituição de Abril, somos politicamente liberais; a nossa democracia é uma democracia liberal; o liberalismo político oitocentista está na matriz do que hoje somos, como regime representativo, pluralista, ancorado na liberdade e nos direitos civis.

Fomos, todavia, mais longe; e acrescentámos outros caminhos. 

Por um lado, fomos mais longe no caminho que o vintismo abriu, mas de que só percorreu os primeiros lanços, porque abolimos o que na monarquia remetia para formas antigas de legitimidade e exercício do poder, porque depois estendemos a legitimidade eleitoral a todos os órgãos políticos de soberania, porque desenvolvemos e clarificámos a separação de poderes, porque estendemos a liberdade ao direito de reunião e associação, porque evoluímos na igualdade civil, porque avançámos na laicidade, porque valorizámos a descentralização política, porque robustecemos as garantias jurídicas. 

Por outro lado, fomos também por caminhos que o liberalismo não quis trilhar. Fomos pelo caminho da democracia política propriamente dita, baseada, como diz a Constituição de 1976, no “sufrágio universal, igual, direto, secreto e periódico”, na não discriminação, na plena liberdade religiosa, na multímoda participação dos cidadãos e das forças sociais na tomada de decisão política. E fomos pelo caminho da democracia económica, social e cultural, honrando o trabalho e os trabalhadores, almejando a igualdade de oportunidades, a solidariedade e a justiça, quer dizer, escolhendo a democracia comprometida com a redução das desigualdades, a coesão social e o bem-estar. 

Aos nossos olhos de hoje, a realização integral das promessas contidas no primeiro liberalismo, político, passa pela rutura com o seu entendimento restritivo das liberdades e direitos, o entendimento que os limitava aos direitos e garantias civis e restringia os direitos políticos a uma pequena parte da população; e passa pelo desenvolvimento dos direitos humanos na sua interdependência e indivisibilidade, como direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais. Democracia, pois. 

Passa ainda pela contenção do programa liberal no que ele implicava a interdição da intervenção do Estado na esfera económica e social e a recusa de instituições reguladoras dos mercados. Nesse sentido, se a nossa democracia é liberal, na dimensão política, é-o por redundância, porque não há democracia pluralista que não seja liberal. Mas é democracia social, ou socialmente avançada, ou de forte cunho social, como se quiser dizer, e essa, sim, é uma diferença essencial com o liberalismo vintista.

A relação entre a Constituição de hoje e a sua antepassada de 1822 é, portanto, marcada, no que importa aos respetivos conteúdos, por aproximações e por distâncias. Há, porém, na perspetiva propriamente política, uma continuidade que sobreleva tal tensão, e é pelo seu sublinhado que gostaria de concluir.

A Revolução Liberal de 1820 e a Constituição de 1822 inscrevem-se, de forma particularmente evidente, na corrente da história portuguesa que combateu pela liberdade contra a intolerância, pela razão contra o fanatismo, pela igualdade contra o regime de privilégios e exclusões, pela representação contra a autocracia. Uma corrente que nasceu antes e existiu depois das Cortes Constituintes, que foi perseguida e derrotada nos vários momentos de reação absolutista, que venceu a Guerra Civil e estabeleceu as bases do regime liberal. Uma corrente que se bateu pela consideração de Portugal “na balança da Europa” (como escreveu Garrett), pela instrução e a formação cívica, pela afirmação de um espaço público, pela modernização económica e social, pelos direitos pessoais. 

Essa corrente percorreu todo o século XIX e, no século XX, sofreu a pulsão antiliberal e autoritária do Estado Novo. Essa corrente só veio a afirmar-se plena e duradouramente com a democracia. Por isso, sim, Fernandes Tomás, Ferreira Borges e Borges Carneiro, como Almeida Garrett, Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, Sá da Bandeira e tantos outros, são nossos. Com eles partilhamos o amor à liberdade, a aversão a escolásticas e ortodoxias, o combate a censuras e inquisições, a recusa de privilégios e discriminações, a crença no progresso, a rejeição da submissão e o compromisso com a cidadania.

E é também isso que hoje, aqui, celebramos.