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Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na sessão de abertura do colóquio “Amílcar Cabral e a História do Futuro”


Amílcar Cabral e a dialética da cultura

13 de janeiro de 2023 


1.  "A libertação é um ato de cultura"

Uma das frases mais conhecidas e citadas de Amílcar Cabral, o fundador e líder histórico do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), nascido em 1924 e assassinado em 1973, é a que proclama: "a libertação é um ato de cultura" (Cabral, 2013: I, 294; todas as citações feitas com atualização ortográfica)[1]. Cabral dizia também que ela era um "facto cultural" e um "fator de cultura" (Cabral, 2013: I, 280).

Eis um bom ponto de partida para compreender o seu pensamento e prática sobre a cultura, uma das áreas em que mais nítida se torna a sua dupla condição de "combatente e investigador", os termos empregados por ele próprio no texto que redigiu para a UNESCO em 1972 (Cabral, 2013: I, 283).

Cabral faz uma distinção clara entre "cultura" e "manifestações culturais": "A cultura é a síntese dinâmica, ao nível da consciência do indivíduo ou da coletividade, da realidade histórica, material e espiritual, duma sociedade ou dum grupo humano, das relações existentes entre o homem e a natureza, como entre os homens e as categorias sociais. As manifestações culturais são as diferentes formas pelas quais esta síntese se exprime, individual ou coletivamente, em cada etapa da evolução da sociedade ou do grupo humano em questão" (Cabral, 2013: I, 294). A cultura teria, pois, mais a ver com os processos de formação, ao longo do tempo, das estruturas simbólicas e das maneiras de ser e fazer próprias de um grupo; quer dizer, está mais próxima da identidade. Sendo o colonialismo a recusa da existência autónoma de um povo e a usurpação da sua condição de sujeito da história, ele é, por conseguinte, a negação da sua identidade cultural. Como a negação da identidade corresponde à negação da dignidade, Cabral conclui que todo o domínio colonial suscita, da parte do colonizado, uma "resistência cultural", que procura preservar a dignidade e identidade própria assim feridas, de onde uma contradição insanável: a condição necessária do colonialismo é a exclusão do colonizado da história, a consequência necessária é a oposição do colonizado que queira manter a sua qualidade de sujeito histórico.

Isto explica, continua Cabral, várias coisas: que a contestação anticolonial comece geralmente no plano das manifestações culturais, designadamente na literatura, como reivindicação da identidade e do valor da cultura do povo oprimido, constituindo esta "contestação cultural do domínio colonial […] fonte primária do movimento de libertação"; que, como combate pela reposição da dignidade, a luta de libertação tenha por objetivo primacial promover "o regresso à história" deste povo; que haja "relações de dependência e reciprocidade entre a luta de libertação nacional e a cultura", podendo considerar-se "o movimento de libertação a expressão política organizada da cultura do povo em luta" (Cabral, 2013: I, 275, 249, 269, 272). E retira a sua primeira conclusão, exprimindo-a, na comunicação de 1972 para a UNESCO, da seguinte forma: "Compreende-se assim que, sendo o domínio imperialista a negação do processo histórico da sociedade dominada, é necessariamente a negação do seu processo cultural. Também – e porque uma sociedade que se liberta verdadeiramente do jugo estrangeiro retoma os caminhos ascendentes da sua própria cultura – a luta de libertação é, antes de mais, um ato de cultura" (Cabral, 2013: I, 294).

A escala a que o autor se refere é a nação; a luta de libertação parte da cultura nacional negada pelo opressor e, à medida em que progride e obtém vencimento, restaura a dignidade dessa cultura e, ao mesmo tempo, abre horizontes para o seu desenvolvimento. No decurso da história e em articulação com as estruturas sociais, forma-se uma cultura que dá corpo à identidade nacional (que Cabral já tematiza como sendo um duplo dinamismo, a constituição de uma unidade e a sua diferenciação e singularização face a outras; cf. Cabral, 2013: I, 290). Cujo valor e individualidade, negadas pela dominação colonial, a libertação repõe – e por isso é que é, em si mesma, do ponto de vista subjetivo, "um ato de cultura" e, do ponto de vista objetivo, um "facto cultural".

A abordagem é consistente com a maneira atenta, quase sociológica, com que este engenheiro agrónomo treinado no trabalho de campo analisa a realidade guineense e cabo-verdiana, usando amplamente mas também adaptando a teoria marxista das classes sociais, em função do que designa como "o caráter fundamentalmente horizontal da estrutura social dos povos africanos" decorrente da "multiplicidade ou profusão de grupos étnicos" (Cabral, 2013: I, 291). É também coerente com a reclamação, para si e para o PAIGC, da "independência de pensamento e ação", e o apelo permanente para que se parta do conhecimento detalhado da realidade concreta da Guiné e de Cabo Verde, evitando ideias e fórmulas gerais não testadas em relação com tal realidade e sendo realistas nos objetivos, calendários e métodos de atuação (Cabral, 2013: I, 153-172). Explica ainda a sua crítica vigorosa das políticas coloniais de assimilação, que, não estando no patamar das políticas de segregação ou de extermínio, procuram, todavia, também elas destruir a identidade dos colonizados pelo esvaziamento da sua matriz cultural (Cabral, 2013: I, 286). Ajuda enfim a compreender o extremo cuidado com que evita qualquer ataque simétrico à cultura do povo português e assinala que a luta de libertação se cinge ao combate anticolonial. Por exemplo, já em 1965 escrevia: o "inimigo não é o povo português, nem sequer é o próprio Portugal […] é o colonialismo português representado pelo Governo colonial-fascista de Portugal" (Cabral, 2013: II, 194); e, num dos últimos textos que escreveu, em janeiro de 1973: "Nunca confundimos colonialismo português e povo de Portugal; o povo de Portugal é nosso aliado" (Cabral, 2013: II, 152).

Aliás, este enfoque nas estruturas sociais e culturais consolidadas na longa duração da história fez Cabral ir ainda mais longe. Olhando para o passado, não teve pejo em escrever: "Não é defender o domínio imperialista reconhecer que deu novos mundos ao mundo, cujas dimensões reduziu, que revelou novas fases de desenvolvimento das sociedades humanas e, a despeito ou por causa dos preconceitos, das discriminações e dos crimes aos quais deu lugar, contribuiu para dar um conhecimento mais profundo da humanidade como um todo em movimento, como uma unidade na diversidade complexa das características do seu desenvolvimento" (Cabral, 2013: I, 284).

Como bem se sabe, mas é oportuno recordar agora, Cabral disse sempre preferir a negociação com o Governo português à luta armada. Justificou o seu início, em 1963, com a recusa liminar de Lisboa de qualquer tipo de negociação assente no reconhecimento do direito à autodeterminação, nos termos das Nações Unidas; e, até à sua morte, recolocou regularmente em cima da mesa o cenário negocial – tendo, em 1972, o cuidado de explicitar que as negociações poderiam incluir "a maneira de tomar em consideração os interesses de Portugal no nosso país", no caso, a Guiné-Bissau (Cabral, 2013: II, 237). É, aliás, quase visionário o modo como antecipa a futura "cooperação" entre ex-colonizado e ex-colonizador, uma vez conseguida a independência. Vale a pena reter as palavras que utilizou na sua última mensagem de Ano Novo, em 1 de janeiro de 1973, dirigindo-se aos compatriotas: "nós chamamos a isso ["a sua própria expressão política e social", que o Governo português dizia ser o objetivo do "homem africano"] independência, quer dizer, a soberania total do nosso povo no plano nacional e internacional, para construir ele mesmo, na paz e na dignidade, à custa dos seus próprios esforços e sacrifícios, marchando pelos seus próprios pés e guiado pela sua própria cabeça, o progresso a que tem direito, como todos os povos do Mundo. E isso em cooperação com outros povos, incluindo o povo de Portugal, o qual, em três guerras de libertação contra Castela, em Espanha, lutou para conquistar a sua própria expressão política e social, a sua independência – e venceu" (Cabral, 2013: II, 265).       

 

2. "A libertação é um fator de cultura"

A ideia de que a libertação é um ato de cultura é, pois, central no pensamento de Amílcar Cabral. E deve ser entendida neste contexto amplo: numa perspetiva histórica, atenta à longa duração, e a partir de valores humanistas, que enaltecem a capacidade de agir, fazer e criar de qualquer povo e nela fazem assentar o essencial da sua própria dignidade; e, consequentemente, repelindo o colonialismo como negação básica e inadmissível de tal dignidade e apelando à resistência cultural como uma das frentes mais decisivas da luta anticolonial. A ideia deve ser também posta em ligação com a defesa do conhecimento específico de cada caso concreto, que o situe no tempo e destaque os seus traços próprios, como a base incontornável de qualquer estratégia bem-sucedida de ação. O princípio marxista da "arma da teoria" é, pois, aproveitado e desenvolvido no quadro de uma dialética permanente entre prática e pensamento, que Cabral restitui em termos bastante precisos. Por exemplo, estes: "temos que ser cada vez mais capazes de pensarmos muito os nossos problemas para podermos agir bem, e agir muito, para podermos pensar cada vez melhor"; "toda a prática fecunda uma teoria" (Cabral, 2013: I, 189, 243).

Esta conclusão sobre as relações entre libertação e cultura – que aquela é um ato desta – não é, porém, a única. Outra, não menos fundamental, até para se perceber bem a primeira, é que a libertação é um "fator de cultura". Quer dizer: gera cultura, contém em si mesma um poder criador e transformador – dos símbolos, das crenças, dos hábitos, das manifestações artísticas.

Este movimento transformador associado à luta de libertação verifica-se, segundo Cabral, em dois planos complementares: como identificação e superação dos aspetos negativos da cultura estruturante da sociedade vigente; e como desenvolvimento em direção a futuros estádios mais ricos e amplos de identidade e criação cultural.

Entre 19 e 24 de novembro de 1969, o PAIGC organizou em Conacri, um "seminário de quadros". As sucessivas intervenções de Amílcar Cabral, proferidas em crioulo e depois traduzidas e divulgadas em português pelos serviços de informação do partido, foram reeditadas no primeiro volume das Obras escolhidas organizadas por Mário de Andrade e publicadas em 1977 (Cabral, 2013) e depois objeto de uma nova edição, mais abrangente, em 2014, em volume próprio, intitulado Pensar para melhor agir (Cabral, 2014). Perante tal auditório e com tais propósitos formativos, o líder abordara todos os desafios e tarefas do partido, sistematizando os seus princípios, objetivos e métodos de ação. Pois bem: um dos pontos em que mais insistia era exatamente a sinalização e a crítica do que designava por "fraqueza" dessa mesma cultura que ele tinha por "base" da própria luta (por exemplo, Cabral, 2014: 98). A ideia de que a luta, que partia da cultura popular e nacional, nos termos que já aqui considerámos, tinha de ser, ao mesmo tempo, "a luta contra as nossas fraquezas" (Cabral, 2013: 1, 242), pertence ao núcleo duro do seu pensamento social e político. No texto seminal da comunicação à UNESCO, em 1972, Cabral desenvolvê-la-ia com palavras que vale a pena reproduzir:

"A apreciação correta do papel da cultura no movimento de libertação exige que sejam considerados globalmente nas suas relações internas os fatores que a definem; que seja recusada a aceitação cega dos valores culturais sem ter em consideração o que podem ter de negativo, reacionário ou regressivo; que se evite qualquer confusão entre o que é expressão de uma realidade histórica e material e o que parece ser uma criação de espírito, separada dessa realidade, ou o resultado de uma natureza específica; que não seja estabelecida uma conexão absurda entre as criações artísticas, válidas ou não, e pretensas características psíquicas e somáticas de uma 'raça'; finalmente, que se evite qualquer apreciação crítica [2], não científica ou acientífica, do fenómeno cultural" (Cabral, 2013: I, 298).

A tensão entre o enraizamento cultural da luta de libertação e o seu poder transformador, implicando a denúncia e ultrapassagem do que de "negativo, reacionário ou regressivo" surgisse, nessa cultura, a um olhar crítico, é um eixo central não só da teoria como da estratégia e da organização defendida por Cabral (cf. Davidson, 1984: 29-36). Tem tudo a ver com essoutra ideia matricial das duas componentes da luta de libertação: o combate pela independência e o combate pelo progresso. Se o primeiro tinha por adversário o colonialismo português (não Portugal, nem o povo português, nem sequer o fascismo português, porque os protagonistas da resistência antifascista tinham de ser os portugueses, apesar da evidente convergência e aliança com os anticolonialistas; cf. Cabral, 2013: I, 80-81), já os adversários do segundo incluiriam forçosamente, no plano sociopolítico, as camadas exploradoras da sociedade guineense e cabo-verdiana (que as havia, como repetidamente assinala o líder do PAIGC) e, no plano sociocultural, os preconceitos, tabus e discriminações que, vivazes na cultura local e, portanto, no interior do próprio partido, impediam os tais "caminhos ascendentes" que já vimos Cabral antecipar como resultados possíveis e necessários da luta de libertação.

Que "valores negativos" eram estes e porque era tão importante contrariá-los? O tribalismo; o racismo e a discriminação racial; a discriminação religiosa; o patriarcalismo e a discriminação das mulheres; o padrão tradicional de exercício da autoridade; e "o medo da natureza": eis os alvos principais. E percebe-se bem porquê, visto que eram evidentes os seus efeitos políticos, quer para a organização do PAIGC, quer para o seu relacionamento com a população, quer para a orientação estratégica do combate anticolonial, quer para o reconhecimento internacional do movimento de libertação e da progressiva estruturação administrativa e social nas zonas da Guiné que ele ia retirando ao controlo militar português.

Amílcar Cabral não poderia ser mais assertivo na forma como condena o tribalismo, o racismo e os antagonismos étnicos ou religiosos. Discursando para os quadros em Conacri, em 1969, usava expressões cortantes, como: "o tempo das tribos em África já passou"; ou: "não queremos que ninguém mais explore o nosso povo, nem brancos nem pretos, porque a exploração não são só os brancos que a fazem, há pretos que querem explorar ainda mais do que os brancos"; ou: "qualquer camarada que tenha na sua cabeça a ideia de que a sua 'raça' é que deve mandar na nossa terra, que se prepare porque haverá guerra com ele" (Cabral, 2014: 102, 133 e 136). E, noutra ocasião, passava palavras de ordem inequívocas, como "combater todos os particularismos (manias de separação) prejudiciais à unidade do povo, todas as manifestações de tribalismo, de discriminação racial ou religiosa. Respeitar e fazer respeitar a religião de cada um e o direito de não ter religião" (Cabral, 2013: II, 184).  

A ideia era que a própria luta de libertação consolidava e desenvolvia a nação guineense, porque requeria e simultaneamente criava unidade nacional – o que só era possível superando as divisões e antagonismos étnicos. Mandingas, balantas, fulas ou papéis, todos eram guineenses (por exemplo, Cabral, 2014: 66, 67 e 138, 139). Eram-no fossem homens ou mulheres; e abundam as palavras duras do líder contra os que, no interior do PAIGC, discriminavam as mulheres e resistiam a que elas ocupassem funções dirigentes (por exemplo, Cabral, 2014: 113, 114. Os abusos de poder deviam ser combatidos, destacando Cabral os três seguintes: o "militarismo", que levava a que membros da organização armada pretendessem dever usufruir, por isso, de privilégios e vantagens (Cabral, 2013: II, 161, 163); o "espírito de régulo" (Cabral, 2013: II, 189), incapaz de aceitar o princípio da decisão coletiva e que importava para as fileiras do movimento as conceções e práticas tradicionais do poder pessoal, ancorado em privilégios de linhagem, idade ou prestígio; e o sexismo, que conduzia a abusos cometidos contra as raparigas (cf. Cabral, (Cabral, 2014:  115). E, quanto a esse "medo da natureza" que era tão vivamente denunciado, a seguinte passagem mostra bem do que se tratava:

"Ninguém pense que a cultura de África, o que é verdadeiramente africano e que, portanto, temos de conservar para toda a vida, para sermos africanos, é a sua fraqueza diante da natureza. Qualquer povo do Mundo, em qualquer estado que esteja, já passou por essas fraquezas, ou há de passar. Há gente que ainda nem chegou aí: passam a sua vida a subir às árvores, comer e dormir e mais nada. E esses, então, quantas crenças têm ainda! Nós não podemos convencer-nos que ser africano é pensar que o relâmpago é a fúria de Deus. Não podemos acreditar que ser africano é pensar que o homem não pode dominar as cheias dos rios. Quem dirige uma luta como a nossa, quem tem a responsabilidade duma luta como a nossa, tem de entender, pouco a pouco, que realidade concreta é essa" (Cabral, 2014: 98).         

A crítica dos elementos "regressivos" da cultura guineense e cabo-verdiana e a reivindicação do direito e do dever de assinalá-los e contrariá-los, têm, pois, um óbvio valor instrumental, dentro da luta de libertação. Mas ligam-se também a esse segundo plano complementar em que se concretizaria o papel desta como "fator de cultura" - libertada do "jugo estrangeiro", a sociedade retomaria os "caminhos ascendentes" do desenvolvimento cultural.

"Ascendentes", em "progresso", quer dizer: evoluindo; e evoluindo positivamente. Ora, na mente de Cabral, o que afere o progresso são tipicamente os valores modernos, como a racionalidade, o humanismo, a ciência ou a tecnologia, esses que a emancipação política nacional e o desenvolvimento social permitiriam, enfim, à Guiné como ao conjunto de África adotar, adaptar e renovar.

Intervindo, em 1970, na Universidade de Siracusa, Estados Unidos, na homenagem aí realizada a Eduardo Mondlane, assassinado um ano antes, sobre a relação entre a luta de libertação e a cultura, é nestes precisos termos que Cabral define os objetivos a prosseguir "no quadro da independência nacional e na perspetiva da construção do progresso económico e social do povo":

" – desenvolvimento de uma cultura popular e de todos os valores culturais positivos, autóctones;

- desenvolvimento de uma cultura nacional baseada na história e nas conquistas da própria luta;

- elevação constante da consciência política e moral do povo (de todas as categorias sociais) e do patriotismo, espírito de sacrifício e dedicação à causa da independência, da justiça e do progresso;

- desenvolvimento de uma cultura científica, técnica e tecnológica, compatível com as exigências do progresso;

- desenvolvimento, com base numa assimilação crítica das conquistas da humanidade nos domínios da arte, da ciência, da literatura, etc., de uma cultura universal tendente a uma progressiva integração no mundo atual e nas perspetivas da sua evolução;

- elevação constante e generalizada dos sentimentos de humanismo, solidariedade, respeito e dedicação desinteressada à pessoa humana" (Cabral, 2013: I, 281).

E, um pouco antes, havia deixado esta reflexão sobre a cultura africana:

"É fora de dúvida que a subestimação dos valores culturais africanos, baseada nos sentimentos racistas e na intenção de perpetuar a sua exploração pelo estrangeiro, fez muito mal a África. Mas, face à necessidade vital do progresso, os seguintes factos ou comportamentos não são menos prejudiciais": e identifica os elementos negativos que já repertoriámos. Para rematar: "Da mesma forma, o que importa é não perder tempo com discussões mais ou menos bizantinas sobre a especificidade ou não especificidade dos valores culturais africanos, mas sim encarar esses valores como uma conquista de uma parte da humanidade para o património comum a toda a humanidade, realizada numa ou em diversas fases da sua evolução. O que interessa é proceder à análise crítica das culturas africanas face ao movimento de libertação e às exigências do progresso face a esta nova etapa da história de África. Poderemos assim ter consciência do seu valor no quadro da civilização universal, mas comparar este valor com os das outras culturas, não para determinar a sua superioridade ou inferioridade, mas para determinar, no âmbito geral da luta pelo progresso, qual é a contribuição que deu e deve dar e quais são as contribuições que pode e deve receber" (Cabral, 2013: I, 278).

As palavras-chave são elevação, universalismo, desenvolvimento: são elas que enformam não só o pensamento do intelectual como a estratégia de ação do líder anticolonial e revolucionário. São elas que impôs ao PAIGC. Elevação das capacidades: daí o lugar absolutamente central da alfabetização dos adultos, da educação das crianças e da formação dos quadros, da criação de bibliotecas e do exercício da crítica, quer para a organização no exterior, quer sobretudo em cada zona da Guiné que ia sendo libertada. Nos seus vários sentidos, a escola é sempre a primeira bandeira da luta pela independência e a primeira pedra do almejado progresso. Desenvolvimento das condições de vida e bem-estar, e da autonomia de sujeitos históricos, por via da assistência sanitária, da promoção da saúde pública, da racionalização da economia local, da organização comunitária, das manifestações culturais, da representação política – outras tantas apostas da construção do Estado e administração própria, na Guiné libertada. E universalismo, na medida em que essa cultura popular, nacional e africana que constitui o alicerce mesmo da luta é desenvolvida e transformada, quer pelo influxo dos valores e saberes modernos, designadamente ligados à cultura humanista, à ciência e à tecnologia, quer na interinfluência que enriquece o "património comum da humanidade" a que Cabral quer associar os contributos africanos.

Parece, pois, pertinente usar o conceito hegeliano-marxista de dialética, para dar conta desta visão ampla da cultura que subjaz às ideias gémeas da libertação como ato e como fator de cultura. A plena realização do potencial cultural da libertação implica uma dupla tensão: entre enraizamento e capacidade crítica face à identidade cultural de que se parte; entre afirmação do valor próprio e singular da cultura popular e nacional a que se pertence, e vinculação ao quadro global e tendencialmente universal de desenvolvimento da cultura científica, técnica e política e de exercício da criação cultural. Nesta dialética se joga a força do passado e o apelo do futuro, a preservação e o progresso, o local e o universal, e, segundo Amílcar Cabral, esta dialética é incontornável na luta pela dignidade de cada povo e da cada pessoa, porque é ela que permite articular o combate pela autodeterminação com o combate pelo desenvolvimento – o direito de ser livre e soberano com o direito de ser próspero e ser justo.         

 

3. A atualidade de Amílcar Cabral

No romance que dedicou recentemente a Cabral, A última lua de Homem Grande, Mário Lúcio Sousa acentua a sua identidade "compósita", de "pertenças múltiplas" (como diria Maalouf, 1999: 46). Nascido em Bafatá filho de pais cabo-verdianos, passando a infância e adolescência entre a Guiné e Cabo Verde, depois deslocado para Lisboa, onde estudou e se licenciou em Agronomia e se casou uma primeira vez com uma portuguesa, dotado de grande cultura e sensibilidade e ao mesmo tempo com uma grande capacidade técnica, como engenheiro responsável pelo recenseamento agrícola da Guiné e conhecedor, também à maneira de um antropólogo, das realidades sociais de ambos os territórios, Amílcar Cabral é o militante político da causa do desenvolvimento e independência do seu povo arrastado para a luta armada pela intransigência do Governo colonial, luta que organizará com determinação, método, autoridade e eficácia. Vivendo uma certa solidão dessa quase tripla identidade (guineense, cabo-verdiana, europeia senão mesmo portuguesa) e do sonho da unificação das duas colónias, que muito poucos acompanham no PAIGC. Interior (pelo nascimento, a pertença e o compromisso) a África e, em certa medida, também exterior a essa sociedade africana que ele observa cuidadosamente, estuda e valoriza, mas um pouco como objeto-outro. Vítima da sua grandeza, do seu sonho e da integridade e independência política pessoal, Cabral seria vítima do golpe de traição que, desejado e preparado, senão apoiado, pelos portugueses, não deixou de provir das próprias fileiras do PAIGC (cf. Sousa, 2022).

Este retrato literário de um líder visionário que paga, de certo modo, o preço de estar para além das suas circunstâncias de espaço e tempo, ajuda seguramente a compreender a vida e a obra de Amílcar Cabral. E, de facto, a amplitude e profundidade do seu pensamento extravasou largamente a região da África Ocidental, inspirando muitos ativistas anticoloniais e antifascistas e muitos construtores dos novos países. A melhor prova de carisma e a melhor justiça histórica foi o facto de o seu objetivo se ter cumprido apesar do assassinato: em setembro de 1973, o novo Estado da Guiné-Bissau haveria de ser proclamado, em Madina Boé, pela Assembleia Nacional Popular reunida pela primeira vez, e imediatamente reconhecido por várias dezenas de países. A 25 de abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas punha fim ao Estado Novo, e era como se, finalmente, Portugal respondesse positivamente às sucessivas cartas públicas que Cabral dirigira às autoridades portuguesas, aos colonos portugueses e aos militares portugueses, propondo-lhes o diálogo e a cooperação e dizendo quanto lamentava as vítimas de ambos os lados da guerra (cf. Cabral, 2013: II, 19-34). A 10 de setembro, Portugal reconhecia a independência da Guiné-Bissau, a 19 de dezembro formava-se o governo de transição em Cabo Verde e a 5 de julho de 1975 era proclamada a independência de Cabo Verde. Uma primeira seleção dos "textos políticos" de Cabral seria editada formalmente no Porto, em 1974 (Cabral, 1974).

A unidade sonhada entre a Guiné e Cabo Verde não resistiria além de 1980 e os caminhos seguidos pelos dois países seriam bem diversos; várias das "fraquezas" e dos perigos que haviam sido por ele identificados manifestaram-se bem vivazes em Bissau, ao passo que a Praia enveredava por um percurso a todos os títulos notável de governação democrática. A influência de Cabral vai, todavia, mais longe: o trabalho desenvolvido antes da independência, nas zonas libertadas – objeto da visita, em abril de 1972, de uma missão das Nações Unidas, com grande impacto internacional – e depois, em todo o país, nas áreas sociais – a educação, a alfabetização, a cobertura sanitária, os armazéns comunitários – foram objeto de análise e divulgação pelo mundo fora. Pense-se, por exemplo, no livro que Paulo Freire (1978) lhe dedicou.

Nada deste legado deve ser esquecido. Mas talvez que a melhor maneira de o fazer, hoje, seja revisitar os seus textos, usando-os como fonte de inspiração para apreciar criticamente os limites do pensamento e da política identitária e para contrapor-lhe a alternativa que Cabral tão laboriosamente construiu: a da relação dialética de nós com a nossa cultura e a dialética das culturas umas com as outras, enquanto partes indispensáveis de uma não menos indispensável comunidade, a da humanidade como um todo.

 

 

Referências:

Cabral, Amílcar (1974): Textos políticos, Porto: CEC.

Cabral, Amílcar (2013): Obras escolhidas, org. Mário de Andrade, 2 vols., [Praia]: Fundação Amílcar Cabral, 2013.

Cabral, Amílcar (2014): Pensar para melhor agir, org. Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, 2 vols., Praia: Fundação Amílcar Cabral, 2014.

Davidson, Basil (1984): "On revolutionary nationalism: the legacy of Cabral", Latin American Perspectives, 41: 15-42.

Freire, Paulo Freire (1978): Cartas à Guiné-Bissau [1977], 2.ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Maalouf, Amin (1999): As identidades assassinas [1998], trad., Lisboa: Difel.

Sousa, Mário Lúcio (2022): A última lua de Homem Grande, Alfragide: Dom Quixote.



[1] Desenvolvimento da intervenção na sessão de abertura do Colóquio "Amílcar Cabral e a história do futuro", promovido pelo Centro de Estudos Sociais, o Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa e a associação Cultra, realizado na Assembleia da República a 13 e 14 de janeiro de 2023. 

[2]  Sic; embora o lógico é que fosse "apreciação acrítica".