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Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva1, na Sessão Nacional do Parlamento dos Jovens – Ensino Básico, Assembleia da República


10 de maio de 2022

1.

Não sou muito dado a coisas de natureza puramente protocolar e costumo aproveitar estas oportunidades, em que sei que as pessoas vão trabalhar, para lhes fazer pedidos. A vocês, aliás, às senhoras Deputadas e senhores Deputados do Parlamento do Jovens, tenho pedidos em forma de perguntas.

Queria fazer-vos quatro perguntas e ver se, com as vossas reflexões e debates, me ajudariam, depois, a encontrar boas respostas para essas perguntas, porque é basicamente isso que fazemos num Parlamento: fazemos perguntas, tentamos encontrar respostas, tentamos entender-nos sobre essas respostas e, depois, com base nelas, fazemos coisas, agimos para tentar melhorar a nossa própria vida coletiva.

 

2.

Sobre este tema da desinformação há muitas perguntas que se podem fazer, mas, para percebermos bem essas perguntas, talvez devamos primeiro entender-nos sobre o que queremos dizer quando dizemos «desinformação».

Há várias maneiras de explicar o que queremos dizer quando dizemos «desinformação». A que uso, por ser a mais prática, é a seguinte: desinformação é qualquer conteúdo que reclama ser uma informação verdadeira ou credível sobre factos, mas que é intencionalmente falso, com o propósito de induzir as pessoas em erro e, em particular, de instigar o ódio ou a perseguição entre as pessoas.

Pode haver factos que não sabemos ainda verdadeiramente quais são; podemos dizer coisas que não são verdadeiras e não há nenhum problema com isso — podemos escrever, por exemplo, romances. Mas, quando falamos de desinformação, queremos referir-nos especificamente a informações falsas, intencionalmente falsas, que procuram criar climas de intolerância, perseguição, discriminação ou ódio. E, se aceitarmos esta definição prática de desinformação, a primeira pergunta que podemos fazer é se os mecanismos, os meios que tínhamos até agora à nossa disposição para contrariar a desinformação são hoje suficientes ou não.

Quais são esses meios? Aqui, no Parlamento, quando perguntamos quais são os meios ao nosso dispor, começamos por olhar para a Constituição, que é a lei das leis, a partir da qual as diferentes leis são elaboradas.

A nossa Constituição diz que a liberdade de expressão e de informação é um direito fundamental. Isto tem duas consequências: pertencendo ao regime de direitos, liberdades e garantias, significa, primeiro, que este direito é diretamente aplicável, isto é, não preciso de qualquer outra lei ou de qualquer autorização para me exprimir livremente e para livremente informar os outros, porque esse é o meu direito constitucional; e, segundo, que ninguém pode limitar este meu direito a não ser em circunstâncias muito excecionais, para defender outros direitos e sem atacar o núcleo essencial que forma este direito.

A Constituição diz, a propósito da liberdade de informar, que esse direito é um triplo direito: é o meu direito de informar, portanto, de vos informar, de informar os outros; é o meu direito de me informar sobre o que está sucedendo; e é o meu direito de ser informado por outros, designadamente pelos jornalistas.

Não há lugar para qualquer forma de censura, isto é, de impedimento a priori, por terceiros, dos conteúdos de informação; e, se houver algum problema, ele é tratado pelos tribunais ou por uma coisa a que chamamos regulação independente. Isto é o que diz a Constituição, que, naturalmente, foi elaborada pensando sobretudo no direito de informação que se exprime através da comunicação social — jornais, rádios e televisões.

A pergunta que se põe, hoje, é se este quadro de regras é suficiente para a nova realidade, que é a de que talvez mais de dois terços da informação que obtemos, obtemo-la não através de rádios, jornais ou televisões, mas através da internet, dos sítios da internet e das redes sociais.

Portanto, a primeira pergunta é se as Sr.as Deputadas e os Srs. Deputados entendem que a nova realidade das redes sociais — Facebook, Twitter, Instagram, etc. — exigiria que revisitássemos, que revíssemos as regras constitucionais sobre a liberdade de expressão e o direito à informação.

 

3.

A segunda pergunta que queria fazer prende-se com o seguinte: como é típico das questões que um Parlamento discute, nunca há uma única abordagem ou uma abordagem que seja indiscutível, isto é, que não mereça debate sobre as realidades ou as questões que abordamos. Se não fosse preciso debate, se toda a gente pensasse o mesmo, se as coisas fossem evidentes para todos, era escusado haver eleições, moções, debates, decisões e até votações por maioria.

Ora, no que diz respeito à desinformação, basta pensarmos dois minutos para rapidamente percebermos que a própria definição de que parti tem que se lhe diga e que devemos ter cuidado quando dizemos de alguém que está a desinformar ou, de algum conteúdo, que ele é desinformação. Em primeiro lugar, porque uns factos são simples, mas outros não. Alguém que diga que o Sr. Ministro da Educação está neste momento a trabalhar no seu escritório na Avenida 24 de Julho está a dar uma informação falsa, porque é evidente que ele está nesta sala — ou, pelo menos, um seu sósia!

Mas saber como é que começou a Revolução Francesa, ou quem é o principal responsável, ou responsáveis, pelo 25 de Abril já são factos que exigem estudo e em relação aos quais a informação pode ser um pouco mais complexa.

Além disso, há muitos factos que não podemos distinguir, com toda a clareza, de opiniões sobre factos. O exemplo mais evidente é o do futebol: um penálti contra a minha equipa nunca é um penálti verdadeiro, e um pequeno encosto na grande área contrária, que faz cair o avançado da minha equipa, é, para mim, claramente um penálti. Portanto, é muito difícil, nestes casos, distinguir factos de opiniões e isso pode suceder em muitas outras circunstâncias.

Mas também o que, em certo momento, achávamos ser a verdade sobre os factos, o nosso conhecimento posterior pode mostrar-nos não ser a verdade ou ser, pelo menos, uma verdade incompleta.

É por estas razões que a nossa abordagem, a nossa maneira de combater a desinformação nas democracias, como a portuguesa, é sempre uma maneira minimalista. Isto é, achamos que a liberdade de expressão e de informação é um bem absolutamente precioso e, portanto, devemos condicionar essa liberdade apenas pelo que seja estritamente necessário.

Dizer coisas estúpidas não quer dizer necessariamente desinformar; vangloriar-se não quer dizer necessariamente desinformar. Insisto: para haver desinformação é preciso que o conteúdo seja intencionalmente falso, com o propósito de enganar as pessoas e levá-las a fazer coisas que normalmente não fariam — por exemplo, discriminar-se, insultar-se, perseguir-se, odiar-se ou até entrar em violência umas com as outras.

Portanto, a abordagem que temos hoje, tradicionalmente, na Europa é uma abordagem que prefere que haja alguma desinformação a circular do que haja uma redução do espaço de liberdade de as pessoas se exprimirem e se informarem umas às outras. Esta é a nossa tradição.

A pergunta que se coloca hoje e que queria fazer-vos, a segunda da minha lista, é se o nível de ódio, desinformação e até de violência que assalta as redes sociais atualmente nos obriga, ou não, a ser um pouco menos minimalistas ou um pouco mais avançados nesta regulação dos conteúdos das redes sociais.

 

4.

Quando dizemos que qualquer problema que decorra do exercício da liberdade de expressão deve ser regulado pelos tribunais ou por uma entidade administrativa independente, também estamos a dizer coisas óbvias no que diz respeito ao que se passa nas televisões, nas rádios ou nos jornais. Um diretor ou diretora de um jornal está sempre a fazer escolhas: publica este artigo e não publica aquele, umas vezes porque não tem espaço, outras vezes porque acha que não tem interesse suficiente e outras vezes porque não está de acordo com o que o jornalista ou a jornalista escreveu. Ninguém chama a isso censura. Censura seria se alguém exterior — por exemplo, um Governo — pudesse intervir na definição editorial e no conteúdo de um jornal.

Acontece que hoje, no Twitter ou no Facebook, muitos de nós pedem às empresas que gerem esse Twitter ou esse Facebook, mas que não se organizam como os jornais se organizam (como dizemos tecnicamente, são meros "agregadores" de conteúdos), para que não publiquem conteúdos que são de violência ou insulto ou discriminação por razões étnicas ou religiosas, por exemplo.

A minha pergunta é se devemos avançar para aí, se devemos dar às empresas que gerem o Facebook, o Twitter ou outras redes sociais esse poder editorial sobre os seus conteúdos. Isso já sucedeu quando, por exemplo, uma rede social até impediu a publicitação de mensagens de um presidente norte-americano. Isso deve ser permitido ou não?

 

5.

Por fim, num Parlamento tendemos sempre (e ainda mais quando temos o Ministro da Educação à nossa beira) a dizer que, antes de contrariar a desinformação por via de proibições, restrições ou limitações, devemos preparar as pessoas para saberem distinguir, elas próprias, os factos das falsidades, as versões credíveis sobre factos das versões tendenciosas.

Isso faz-se através da educação para a ciência, porque não há nada melhor do que a ciência para nos armar, para pormos a nossa cabeça a pensar e não nos deixarmos enganar; faz-se pela educação para os média, a educação que valoriza o jornalismo, que é uma mediação profissional no exercício do direito à informação; e, mais genericamente, faz-se através da educação para a cidadania.

A minha última pergunta é se, na vossa opinião, devemos melhorar a nossa educação, a educação que praticamos para a cidadania, a ciência e os média. Gostaria de saber se as coisas estão bem como estão, ou se é preciso melhorar e, se for preciso melhorar, quais são as vossas sugestões.

Este é, digamos, o caderno de encargos que, da minha parte, gostaria de deixar às Sr.as Deputadas e aos Srs. Deputados do Parlamento dos Jovens, por uma razão muito simples. O princípio número um da democracia é o de que nós nos governamos a nós próprios, nós somos os sujeitos de nós próprios. E, portanto, nada melhor do que ouvir a vossa opinião e tê-la em conta, quando sois, provavelmente, aqueles de nós que mais usam as redes sociais e, por isso, podem estar mais sujeitos a campanhas de desinformação.

Muito obrigado, Sr. Presidente.

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 [1] - Transcrição da intervenção oral, revista pelo autor.