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Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na Sessão Solene Comemorativa do Bicentenário da Constituição de 1822, na Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira

 21 de setembro de 2022 


Agradeço o convite de Vossa Excelência, senhor Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, para presidir a esta Sessão Solene, no dia que marca também a abertura da nova sessão legislativa da Assembleia cujos trabalhos dirige. Eis uma grande honra para mim; e, sobretudo, um sinal expressivo de apreço e empenhamento na ação conjunta da Assembleia Legislativa e da Assembleia da República.

Embora tenham ocorrido visitas oficiais marcantes de meus antecessores à Região Autónoma e à sua Assembleia, trata-se da primeira vez em que o presidente do Parlamento Nacional intervém em sessão solene da Assembleia Regional. Facto inaugural que deve ser enfatizado, na certeza de que terá futuro.

Permiti-me ainda salientar outro elemento de natureza pessoal. Sou, como sabeis, deputado eleito pelo círculo Fora da Europa e, portanto, um dos quatro representantes, em São Bento, dos portugueses residentes no estrangeiro. Ora, uma das comunidades mais extensas e fortes é a comunidade madeirense, com presença significativa na Venezuela, na África do Sul, no Reino Unido e em tantos outros países. Recebendo-me, a Assembleia Legislativa acolhe aquele que é eleito e porta-voz também dos madeirenses e porto-santenses que, vivendo no exterior, nunca esquecem a sua identidade nacional e regional. Acolhendo-me, acolhe ainda quem, nas anteriores funções de ministro dos Negócios Estrangeiros, pôde beneficiar de íntima cooperação do Governo Regional – por exemplo, do então secretário regional e agora meu colega Sérgio Marques, aqui presente – na concretização das melhores respostas possíveis às dificuldades sentidas pelos nossos compatriotas na Venezuela, nos momentos muito críticos que vivemos; assim como foi e é testemunha privilegiada da forma solidária como o Governo Regional, os municípios, as escolas, os serviços, as instituições sociais e todos os grupos políticos representados nesta Assembleia se têm empenhado no acolhimento e integração dos que, vindos da terra de Bolívar, aqui têm aportado em busca de paz, tranquilidade e bem-estar – sejam eles portugueses, luso- venezuelanos ou venezuelanos. Como deputado eleito por um círculo da emigração e como presidente do Parlamento, quero agradecer-vos por isso. Do fundo do coração.

Quis a Assembleia Legislativa associar a abertura da nova sessão legislativa às comemorações do bicentenário da Constituição de 1822. Em boa hora o fez. Como diz a nossa Constituição de 1976, o regime da autonomia fundamenta-se nas “características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares”. Ora, foi precisamente com a revolução de 1820 que tais aspirações passaram a poder exprimir-se publicamente em liberdade, designadamente através da imprensa. Foi também nesse momento fundador do constitucionalismo que os arquipélagos da Madeira e dos Açores deixaram de ser considerados territórios ultramarinos e foram integrados no então Reino de Portugal. E, sobretudo, foi com o triunfo da conceção liberal de governo representativo que verdadeiramente nasceu a ideia de legitimação política pelo voto a que depois, e por causa das reivindicações que os madeirenses foram exprimindo ao longo de dois séculos, a Constituição democrática veio dar plena expressão, com a consagração da autonomia política regional.

Autonomia rima, pois, com democracia. Sem democracia não poderia haver autonomia regional, como bem mostrou a oposição firme do Estado Novo, mesmo na sua última fase, aos anseios e projetos autonómicos. E porquê? Porque a ideia e a prática democrática estão no âmago da autonomia – como autonomia política, e não apenas administrativa, quer dizer, com Assembleia e Governo; regulada por Estatuto próprio, cuja iniciativa de aprovação e alteração pertence exclusivamente à Assembleia Regional; e com amplos e crescentes poderes de decisão e administração tendo em vista o desenvolvimento regional.

A autonomia é, em si mesma, democracia em ação: pessoas escolhendo representantes para governarem em seu nome, e sob seu controlo, para responderem eficazmente aos seus problemas e melhorarem a sua vida. E só o Estado democrático repudia o centralismo e compreende o valor da descentralização a todos os níveis, local e regional, e a especificidade estatutária que devem ter as Regiões Autónomas.

Por seu lado, no caso português, democracia rima com autonomia. O que nós somos, hoje, como república, é indissociável da autonomia regional e do desenvolvimento que ela permitiu. É indissociável do fim de formas de dominação e subordinação política da chamada Metrópole sobre as chamadas Ilhas Adjacentes que, em certos aspetos, não andavam muito longe do modelo colonial; e é indissociável da superação de séculos de esquecimento, pelo poder central, das realidades e direitos das populações insulares. Sem a autonomia regional, a democracia portuguesa não estaria plenamente realizada.

É, por isso, bastante feliz a fórmula constitucional: Portugal é um Estado unitário, descentralizado e regional. É uma República una, com uma Constituição e órgãos de soberania únicos para todo o território nacional, que integra duas regiões autónomas dotadas de estatutos político-administrativos e órgãos de governo próprios. Somos também membros da União Europeia, o que significa que as nossas regiões autónomas, sendo, por um lado, ultraperiféricas face ao centro europeu, são, por outro, as pontas de lança da projeção atlântica da Europa.

Quando olhamos para a história recente da Madeira e do Porto Santo, verificamos facilmente o enorme impulso que deu, ao desenvolvimento social, a combinação destas três ações: a ação do Estado democrático nacional, nas funções que são as suas no conjunto do espaço nacional e, portanto, também no espaço regional, incluindo a assunção de custos da insularidade e o financiamento da autonomia; a ação das políticas de integração e coesão europeia, com os fundos que mobilizam e disponibilizam às autoridades nacionais e regionais; e a ação dos vários governos e parlamentos regionais, na expressão política dos direitos das populações e no exercício das suas próprias competências. A Região Autónoma da Madeira tem, hoje, um produto per capita que é três vezes superior ao valor de há trinta anos; a taxa de mortalidade infantil, que era de 37 por mil em 1976, está agora nos três por mil; os indicadores de escolarização, incluindo no ensino superior, não têm qualquer comparação com o que eram antes do 25 de Abril. Honra, portanto, à autonomia!

A ligação umbilical entre autonomia e democracia, entre o Estado democrático português e as suas Regiões Autónomas, eis o que mais pretendo enfatizar nesta ocasião. É uma semente lançada já nos tempos progressivos de 1820 a 1823, que também aqui recordamos, uma semente que só veio a florescer em 1976, mas desde então frutifica e embeleza o nosso território comum.

Ela tem por base, insisto, uma revolta genuína contra a dominação centralista e uma aspiração, um desejo de autonomia. Sempre mais forte, sempre mais fecunda. É, como diria um madeirense  ilustre, o cardeal José Tolentino de Mendonça, uma sede: a sede que, como ele bem explica, é força motriz da existência, como desejo que nunca se satisfaz suficientemente e, por isso, nos mobiliza para ir sempre mais longe. Esse desejo de autonomia, nenhuma imposição exógena pode pará-lo: também aqui, “a faca não corta o fogo”, se me permitis usar em meu proveito um belo título de outro grande poeta madeirense, Herberto Hélder.

Como podemos fazer avançar, pois, a autonomia? Não é a mim, mas a vós, que compete dar o essencial da resposta; e já aqui o vosso Presidente deixou expressas as exigências fundamentais. Mas talvez possa oferecer dois contributos, e talvez lhes reconheçais alguma pertinência.

O primeiro é valorizar mais uma perspetiva qualitativa do desenvolvimento da autonomia, face à abordagem puramente aritmética. Uma perspetiva que nos convida a conjugar o legítimo acesso a mais competências e recursos com a assunção plena de responsabilidades, quer no seu exercício quer na articulação harmoniosa com o todo nacional. Uma autonomia mais forte e mais rica, mais densa e mais bem integrada na comunidade nacional, eis um caminho seguro, que já está a ser trilhado e deve continuar a sê-lo.

O segundo ponto tem a ver com o papel indispensável dos parlamentos e da cooperação mutuamente vantajosa entre a Assembleia da República e a Assembleia Legislativa da Região. A dimensão parlamentar é incontornável, também para o aprofundamento e enriquecimento da autonomia: rimando esta com democracia, isso significa que é tanto mais forte quanto mais garantido seja o pluralismo das correntes de opinião, quanto mais eficazes sejam os mecanismos de escrutínio da atividade do governo e da administração, quanto mais o respeito pela composição parlamentar decidida pelo voto popular vá de par com o respeito pelos direitos de todos os deputados e grupos políticos representados.

A boa cooperação parlamentar é, por seu lado, essencial: dadas as competências próprias da Assembleia da República e da Assembleia Legislativa da Região, no encadeamento dos processos legislativos indispensáveis à autonomia; dado o impulso que podem ambas dar aos dossiês que hoje enfrentamos; dado o facto de serem ambas representações plurais da sociedade nacional e regional, e é muito, mas mesmo muito importante que a autonomia mobilize todas as forças políticas que podem participar nos destinos do país.

É real a prática colaborativa entre as duas Assembleias. Estou aqui para reafirmá- la e para me comprometer em melhorá-la, no que puder ser melhorada. Atenção devida às propostas de lei oriundas da Assembleia Legislativa; audição da Região sempre que o assunto em causa seja do seu interesse; escrutínio exigente da ação do Governo da República em matéria de relacionamento com a autonomia regional; consideração das grandes questões colocadas pela autonomia, como o ordenamento constitucional, como a participação na definição da posição portuguesa sobre temas da política europeia para as regiões ultraperiféricas, como as finanças regionais, como o acesso e aproveitamento dos programas e fundos europeus, como o financiamento do ensino superior, como a mobilidade humana, e todas as outras relevantes; e troca regular de experiências e ensinamentos entre os serviços das duas Assembleias, através, designadamente, da prossecução dos Encontros de Quadros Parlamentares.

O centralismo, a desatenção aos problemas específicos da insularidade e da periferia, o esquecimento do valor da continuidade territorial, fragilizam o Estado unitário. Pelo contrário, a unidade do Estado constrói-se também através do enriquecimento da autonomia regional. A natureza democrática do nosso regime político robustece-se com a descentralização política e a configuração específica do regime e órgãos de governo próprios das Regiões. Como protagonistas essenciais da decisão política e da representação social, a Assembleia da República e a Assembleia Legislativa da Região são partes; mais do que partes, são parceiras; mais do que parceiras,  são aliadas.  Aliadas  nessa causa maior que é a melhor  combinação possível  entre  o aprofundamento da autonomia, o desenvolvimento das populações e os interesses  fundamentais da pátria comum, Portugal.