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Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva1,  na Cerimónia de entrega do Prémio Direitos Humanos,  Assembleia da República

 14 de dezembro de 2022

 

1.

Começo por recordar o significado e os objetivos do Prémio Direitos Humanos. Foi uma resolução da Assembleia da República, de 1998 — era presidente o Dr. Almeida Santos —, que o instituiu, ao mesmo tempo que proclamou o 10 de dezembro como Dia Nacional dos Direitos Humanos.

Estas três coisas estão ligadas: ter sido em 1998 — comemorando o cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos e, já agora, o 20.º aniversário da primeira publicação oficial, em Portugal, dessa Declaração; a instituição de 10 de dezembro como Dia Nacional dos Direitos Humanos; e a criação do Prémio Direitos Humanos.

O primeiro elemento que referi é, talvez, o mais importante, porque é aquele que explica melhor o facto de a Assembleia da República se envolver no Dia Nacional dos Direitos Humanos e ter o Prémio Direitos Humanos. Há uma afinidade evidente entre a democracia, de que a Assembleia da República é a sede principal, e a plena realização dos direitos humanos, como a história portuguesa bem demonstra.

É que foi preciso a transição democrática para que, finalmente, saísse em Diário da República, em Portugal, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a qual datava já de 1948. Entre 1948 e 1974, no regime do Estado Novo, a Declaração não foi reconhecida e a prova disso é que nunca foi objeto de publicação oficial no então Diário do Governo. Foi precisa a transição democrática para que o país pudesse ter a primeira publicação oficial da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

 

2.

Instituindo o Prémio Direitos Humanos e o Dia Nacional dos Direitos Humanos, procuramos, na Assembleia da República, cumprir vários objetivos, que a resolução que os aprova identifica com clareza meridiana.

O primeiro é a consciencialização. Queremos que seja cada vez mais generalizada a consciência da importância dos direitos humanos, pelo que a resolução que institui o prémio diz que ele prossegue intuitos formativos, informativos e pedagógicos.

Em segundo lugar, diz também a resolução que pretendemos denunciar as violações de direitos humanos e premiar aqueles que as denunciam, porque não é possível termos consciência da importância dos direitos humanos se essa consciência não incluir, também, a rejeição das suas violações.

Em terceiro lugar, valorizamos a ação e o estudo. Por isso é que o texto da resolução de 1998 diz que se deve atribuir o Prémio Direitos Humanos àqueles que contribuem para a denúncia ou para a consciencialização através do estudo, da divulgação e dos trabalhos que fazem e publicam, ou àquelas organizações da sociedade civil que, pela sua ação, contribuem para a denúncia das violações de direitos humanos ou para a realização dos direitos humanos.

É de tudo isto que estamos a tratar hoje; e nenhuma destas componentes é separável das restantes. Assinalamos a efeméride que nos liga ao dia 10 de dezembro de 1948, em que a comunidade internacional aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos; mas, ao fazê-lo, salientamos a atualidade desta problemática.

 

3.

Chamo a atenção para cinco elementos essenciais da problemática dos direitos humanos.

Em primeiro lugar, a proclamação e a realização dos direitos humanos equivalem àquilo que Norberto Bobbio designou como a revolução coperniciana nas relações entre as pessoas e os poderes, designadamente entre os indivíduos e os Estados. Com as sucessivas declarações de direitos dos séculos XVII, XVIII e XIX, fomos deslocando a perspetiva para os indivíduos, as pessoas. A partir dessa perspetiva, fomos estabelecendo os limites à ação dos poderes e as responsabilidades dos poderes: os limites que não podem infringir, sob pena de fazerem perigar as nossas liberdades; e as responsabilidades que lhes cabem na plena realização dos direitos e garantias.

Em segundo lugar, falar a partir da perspetiva dos direitos humanos significa falar a partir da dignidade humana, porque eles têm a ver, fundamentalmente, com a nossa dignidade mais básica, tal como se exprime nas liberdades que são nossas, nas garantias que devemos ter e nos direitos que devemos ver concretizados. Investindo na dignidade, investe-se, também, na nossa humanidade, porque a dignidade de que versam os direitos humanos é aquilo que temos de mais comum.

Em terceiro lugar, falamos de direitos que são interdependentes. Evidentemente, podem ser abordados numa perspetiva histórica, em várias gerações, ou numa perspetiva mais jurídica ou formal, designadamente nas distintas naturezas que assumem. Mas a liberdade de me exprimir, o direito de me informar, a liberdade de professar o culto e ter as crenças e opiniões que entender, as garantias de que disponho face, por exemplo, a prisões arbitrárias, o direito à água potável, à saúde, à educação ou a um ambiente saudável, isso e o mais que lhe está ligado representam um todo. Representam um conjunto incindível, que deve ser compreendido e promovido como um todo, porque, por exemplo, a minha liberdade também depende das condições mínimas que tenha de acesso à educação e, reciprocamente, o valor da educação depende também de ela respeitar e incentivar a minha liberdade.

O quarto elemento a salientar é a universalidade dos direitos humanos. O que dizemos, o que reclamamos é que se apliquem independentemente da história, da tradição, dos costumes, das religiões, das culturas e das civilizações de cada um. Porque eles são compatíveis com diferentes religiões, diferentes civilizações, diferentes maneiras de ser, diferentes maneiras de olhar para as coisas e para a natureza, diferentes tradições e diferentes histórias. Os direitos humanos devem, sim, ser universais, porque a dignidade humana que eles promovem é, repito, a nossa comum humanidade, é aquilo que nos caracteriza como humanidade.

Finalmente, o quinto elemento: para que este conjunto possa ser realizado é imperioso o esforço de todos: das autoridades públicas, das sociedades civis, das empresas, das famílias, das pessoas, dos grupos informais. Todos são mobilizáveis, mais, todos são responsáveis pela promoção dos direitos humanos.

 

4.

Em nome da Assembleia da República, exprimo as mais sinceras felicitações às duas associações que foram premiadas com a Medalha de Ouro dos Direitos Humanos de 2022, a Acreditar e a João13; enalteço e agradeço profundamente o trabalho desenvolvido, em favor da integração de crianças e jovens refugiados, pela Fundação Allamano e pela Adolescere, as entidades que recebem este ano o Prémio Direitos Humanos.

E, como bem salientou o júri do Prémio, quando se distingue duas associações envolvidas no acolhimento e na integração de pessoas refugiadas, quer-se também, através delas, agradecer à sociedade civil portuguesa que se tem interessado por esta causa.

O presente reconhecimento ao apoio humanitário a refugiados vem na continuidade de uma linha de ação que sucessivas edições do Prémio Direitos Humanos têm tornado clara.

Em 2000, foi o Conselho Português para os Refugiados que recebeu o Prémio; em 2014, a Medalha de Ouro dos Direitos Humanos foi atribuída ao Serviço Jesuíta aos Refugiados; em 2015, o Prémio Direitos Humanos foi concedido à Plataforma Global de Apoio aos Estudantes Sírios, fundada por Jorge Sampaio; e, em 2016, o distinguido foi António Guterres, enquanto Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados.

E bem se compreende esta linha de ação, visto que todas aquelas dimensões de que há pouco falei a propósito dos direitos humanos têm pertinência e urgência acrescidas quando se trata de refugiados.

De facto, quando os acolhemos e apoiamos — tendo, muitas vezes, de secundarizar algumas questões jurídicas e administrativas ligadas à gestão de fronteiras ou, mesmo, à prova documental da identidade — estamos, justamente, a dizer que valem mais as pessoas, neste caso os indivíduos que sofrem, do que os Estados.

Se há gente que precisa de ver a dignidade respeitada é esta que foi obrigada a deslocar-se, abandonando a sua terra, para fugir ao conflito armado, a outros tipos de violência ou à perseguição. É isso que são os refugiados, pessoas que têm de abandonar os seus locais de origem ou residência porque, neles, os seus direitos humanos estão a ser grosseira e violentamente violados.

Cuidando destas pessoas, não podemos dizer que vamos, primeiro, tratar das liberdades e garantias e só mais adiante acautelar os direitos sociais; ou que hoje nos interessamos pela segurança pessoal deles e amanhã pela habitação ou a escola dos filhos. Não; temos de tratar dos vários direitos ao mesmo tempo.

Depois, os direitos humanos são universais. Não interessa que venham do Darfur, do Afeganistão ou da Síria, os refugiados são pessoas e como pessoas devem ser tratadas.

E, finalmente, como este prémio também mostra, é preciso mobilizar toda a gente. É preciso mobilizar as autoridades públicas — e temos a feliz circunstância de a ministra dos Assuntos Parlamentares ser também, como ministra adjunta, responsável pelas políticas de acolhimento a migrantes em Portugal; mas precisamos também da sociedade civil, e o acolhimento que, entre nós, tem sido feito aos refugiados da guerra contra a Ucrânia mostra como ela se mobiliza: desde logo, a comunidade ucraniana aqui residente; depois, as famílias portuguesas, tanta gente anónima que não regateia esforços; e ainda as associações e instituições sociais que dão enquadramento, eficácia e ganhos de escala ao trabalho de todos.

 

5.

Tenhamos a noção clara de que, segundo os últimos dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, há praticamente 80 milhões de deslocados forçados no mundo, hoje. O que significa 1% da totalidade da população mundial. São quase o dobro do número que tínhamos há dez anos. A maior parte deles são deslocados forçados no seu próprio país, mas 26 milhões tiveram de sair para o estrangeiro e, portanto, são refugiados em sentido estrito.

Esta é uma casa política, é a Assembleia da República, uma instituição democrática, e nela importa ir direto ao assunto: cada uma destas refugiadas e cada um destes refugiados é-o exatamente porque os seus direitos humanos mais básicos foram violados. Ao darmos o Prémio Direitos Humanos àqueles que se distinguem no seu acolhimento, estamos também a denunciar as violações de direitos humanos de que eles são vítimas.

Isso não pode ser esquecido, como não pode ser esquecido tudo o que nós, como democracia, fazemos para combater as violações de direitos humanos e, em particular, esta horrível e constante produção de novos fluxos de refugiados. Hoje é dia para recordar o enorme esforço que a diplomacia portuguesa faz, como tantas outras, na diplomacia preventiva, para evitar crises e para evitar que os diferendos sejam dirimidos por meios violentos. Hoje é dia de saudar as Forças Armadas Portuguesas, que, através das forças nacionais destacadas, participam, em vários teatros, em missões e operações de paz. Hoje é dia de recordar que o Estado português e a União Europeia no seu conjunto tomam medidas políticas de apoio ou de sanção para evitar que os conflitos degenerem em violência e catástrofe humanitária.

Dizendo agora tudo isto, podemos dizer, com maior propriedade, muito obrigado àqueles e àquelas que, em associação, juntando esforços, exprimindo o sentido de solidariedade, participam na realização deste nosso dever de apoiar quem precisa da nossa ajuda, o dever de cuidar de quem está em circunstâncias de necessidade, o dever de acolher e de praticar a hospitalidade.

Usamos, várias vezes, na área da educação, um felicíssimo provérbio senegalês que afirma o seguinte: «É precisa toda a aldeia para educar uma só criança.» Hoje, podemos dizer que é precisa toda a aldeia — isto é, todos nós — para acolher uma pessoa em necessidade de amparo; e é isso que saudamos ao premiar estas associações.



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 [1] - Transcrição da intervenção oral, revista pelo autor.