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​Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na Sessão de Abertura do Ano Judicial, Lisboa

10 de janeiro de 2023


Em 2022, na primeira intervenção que realizei, em nome do Parlamento, numa cerimónia de abertura do ano judicial, concentrei as reflexões numa questão crucial para a missão do legislador: a clareza das leis, entendida como rigor, simplicidade e compreensibilidade. Não posso senão renovar o compromisso de trabalhar em prol deste objetivo, para o que a Assembleia da República conta com, entre outros, os pareceres que recebe dos Conselhos Superiores da Magistratura, dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do Ministério Público, assim como do Tribunal de Contas, da Provedora de Justiça e da Ordem dos Advogados.

Dedicarei a intervenção de hoje a outro plano, não menos relevante, da relação de cooperação institucional entre o Parlamento e os diversos operadores judiciais. Que designarei, sem preocupações de sofisticação terminológica, como o acompanhamento parlamentar da atividade dos operadores.

 O seu instrumento fundamental são os relatórios que recebemos e analisamos, provindos do Conselho Superior da Magistratura, do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, do Tribunal de Contas, da Provedora de Justiça, na sua capacidade própria e como responsável do Mecanismo Nacional de Prevenção, e do Conselho dos Julgados de Paz. As sínteses providenciadas nestes relatórios são muitíssimo úteis para o trabalho dos deputados, em todas as dimensões: no debate político pluralista sobre as realizações, os desafios e as prioridades do país, e particularmente sobre o regime de direitos, liberdades e garantias; na preparação, elaboração e avaliação das leis; na fiscalização dos atos do Governo e da administração pública; e na função que também é sua de procuradores dos interesses e anseios das populações.

Para lá da legitimidade e credibilidade institucional, os relatórios apresentam três vantagens essenciais. São regulares e sistemáticos. Assentam em dados objetivos e fontes escrutináveis. E, sobretudo, oferecem uma visão de conjunto sobre realidades que, além de dinâmicas, são complexas, não podendo ser reduzidas aos aspetos mais episódicos e superficiais, mesmo se estes, por qualquer elemento de espetacularidade ou inesperado, suscitarem o interesse dos média e da opinião pública. 

Aliás, se há área que é vítima da hegemonia comunicacional das emoções mais primárias e que requer a pedagogia cívica da necessidade de abordagens racionais e sistemáticas, essa área é, sem dúvida, a justiça.

E não se trata de pretender desvalorizar os problemas, antes pelo contrário. A boa maneira de enfrentá-los é situando-os em contexto, quer no presente quer na linha do tempo, relevando os caminhos que provaram bem e devemos prosseguir, aqueles em que falhámos e que haveremos de abandonar, o pouco ou muito que já fizemos e o (sempre) muito que nos falta fazer.

Assim, o relatório de 2022 do Conselho dos Julgados de Paz evidencia a utilidade deste meio não judicial de resolução de pequenos diferendos, assente na informalidade e na proximidade. Cobrindo, em 2021, 70 concelhos do território nacional, e com uma taxa de resolução muito próxima dos 100%, os julgados de paz permitiram resolver, por acordo entre as partes ou em julgamento, pequenos litígios da vida quotidiana. O Parlamento só pode juntar-se ao programa do Governo, no que ele prevê a consolidação e desenvolvimento deste meio, e aplaudir a participação das autarquias locais, essencial à sua plena realização. 

O relatório da Provedora de Justiça demonstra cabalmente a sua indispensabilidade, para acolher e encaminhar as queixas dos cidadãos face aos poderes públicos. Ilustra a eficácia, visto que mais de metade das queixas são resolvidas a contento dos autores logo na fase de instrução processual, mercê de uma atividade de mediação realizada pela Provedoria. Ilustra também a enorme pressão em que a instituição se encontra, face ao forte crescimento dos procedimentos (cujo número, em 2021, quase duplicava o de 2016); e as dificuldades que ainda enfrentam os cidadãos como titulares de direitos sociais, ou como contribuintes, sendo ainda esconsas e pedregosas as veredas que conduzem, designadamente, à Segurança Social, para as pessoas que mais dela necessitam - desde logo, para os imigrantes.

A mesma necessidade de melhorar substancialmente a maneira como o Estado e a administração respeitam os legítimos direitos das pessoas, singulares ou coletivas, fica bem patente no relatório de atividade dos tribunais administrativos e fiscais – por onde perpassam os movimentos de sinal contrário que definem a evolução recente desta área da justiça, aqui de recuperação processual, ali de aumento do tempo que seria necessário para concluir todas as pendências; e onde se manifesta a urgência em acudir à falta de meios do respetivo Conselho Superior, que lhe dificulta o cumprimento das suas obrigações de gestão e disciplina. 

Uma leitura, mesmo que rápida, dos relatórios remetidos ao Parlamento mostra quão infundadas são algumas ideias feitas sobre a nossa Justiça, que, contudo, circulam imperialmente pelo espaço público. Por exemplo: a taxa de recusa de vistos a atos e contratos públicos, por parte do Tribunal de Contas, é baixíssima; há progressos substanciais no cumprimento das recomendações do mesmo Tribunal sobre a Conta Geral do Estado – tão importantes para a melhoria da qualidade das finanças públicas; ou, como mostra o relatório do Conselho Superior de Magistratura a partir dos dados de 2021, houve, não retrocessos, mas melhorias em indicadores-chave como a taxa de resolução processual e o número de processos pendentes. Quanto ao sistema prisional e de reinserção social, o relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção demonstra a justeza das ações de combate à pandemia e assinala o duplo facto de, não vivendo já o conjunto dos estabelecimentos prisionais um problema de sobrelotação, este afligir ainda alguns desses estabelecimentos.

É, pois, muito rico o conteúdo dos relatórios que o Parlamento recebe das diferentes instituições; e parece-me indiscutível a sua relevância para os deputados e para a cidadania. É caso, até, para perguntar se não podemos avançar um pouco mais, quer no universo das entidades que os apresentam, quer nos modos da sua apreciação. Quanto ao primeiro ponto, e por exemplo, hoje a Assembleia da República só recebe do Ministério Público o relatório bienal de execução da política criminal; fará sentido que receba também, direta e formalmente, a síntese anual de atividades? E, quanto ao segundo ponto, hoje só o relatório da provedora de Justiça é obrigatoriamente objeto de debate parlamentar, em comissão e no plenário; seria possível e útil pôr em prática formas de apreciação parlamentar dos demais relatórios que incrementassem a sua visibilidade e permitissem mais direta interlocução a seu respeito?

O certo é que, no respeito escrupuloso pelo princípio constitucional da separação e interdependência dos órgãos de soberania, o acompanhamento atento da atividade dos tribunais e demais operadores judiciais é uma das funções parlamentares mais importantes. Que permite compreender melhor a distinção entre o controlo de legalidade, que pertence à justiça, e a apreciação de mérito dos atos do Governo e da administração, que cabe ao Parlamento e às instituições da sociedade civil; e também nos recorda que o primeiro dever da ética republicana é respeitar o Estado de direito democrático e os seus princípios fundadores.

Da parte da Assembleia da República, posso assegurar todo o empenho para que se desenvolva este diálogo fundado na análise regular e sistemática de atividades e resultados. Porque creio ser evidente a sua utilidade quer para a função representativa, fiscalizadora e legislativa própria da Assembleia, quer para a missão de administrar a justiça em nome do povo, essa nobilíssima tarefa que a Constituição comete aos tribunais.

Muito obrigado.