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​Intervenção do Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na Conferência/Debate “Música, uma história da Alemanha

Pensar a música, uma história da Alemanha

13 de janeiro de 2023 


1.

Ao contrário do que muitas vezes se imagina, uma pessoa que pode caber na categoria a que agora é usual chamar-se de intelectual público tem algumas coisas parecidas com Epimeteu, o irmão de Prometeu que agia antes de pensar[1]. Uma das provas está na tendência em aceitar convites para colóquios e outros eventos semelhantes, antes mesmo de tomar consciência da densidade dos respetivos temas e da sua distância face ao pouco que vai sabendo.

Aconteceu-me agora, mais uma vez; e aqui estou, tentando não pôr no pescoço a corda de Egas Moniz. Quando o diretor artístico da Casa da Música, António Jorge Pacheco, me falou na possibilidade de fazer anteceder de um debate o concerto inaugural do ano de 2023, dedicado novamente à Alemanha, achei a ideia excelente; depois, quando me desafiou a ser um dos intervenientes, respondi imediatamente que sim. A data ainda vinha longe, o perigo não era iminente. Novembro passou, o mesmo com dezembro e, à medida em que o que começara por ser futuro se insinuava na ordem do dia, o que resta de sensatez em mim próprio começou a sacudir a (in)consciência: que podia eu dizer de minimamente interessante acerca da música e da música alemã, sendo nisso, não apenas leigo, mas um verdadeiro ignorante?

Lembrei-me então de uma saída, que era falar não de música, mas do pensamento sobre a música. É que, se dificilmente entenderemos a história da música clássica sem considerar a Alemanha, menos ainda compreenderemos as reflexões que a música motiva sem olhar atentamente para Além-Reno. Ainda assim o terreno ficava demasiado vasto para as minhas pobres forças, de modo que tive que fazer outra delimitação. Aliás dupla: de disciplina intelectual, focando-me apenas na teoria de raiz ou contorno sociológico, quer dizer, interessada nas relações (vamos enunciar assim, genericamente) entre a música e a sociedade; e de época, observando sobretudo a primeira metade do século XX, para pôr em relevo contribuições sem as quais o nosso presente seria muitíssimo mais pobre do que é.   

E, como genuinamente entendo que a literatura coloca melhor – mais precoce e expressivamente – as grandes questões a que as ciências humanas procuram humildemente dar resposta, começarei por Thomas Mann (1875-1955).


2.

As páginas finais do capítulo XXXI do Doutor Fausto colocam o protagonista, o compositor alemão Adrian Leverkühn, a pensar em voz alta, num círculo de amigos e admiradores, sobre a possibilidade do reencontro entre a música – e a arte em geral, de que a música seria representante superlativa – e a humanidade. O reencontro seria indispensável para “redimir” a música de si própria. Mas não poderia fazer-se por qualquer espécie de cedência, fosse no plano técnico ou emocional, porque uma música que caísse na facilidade e no sentimentalismo trair-se-ia a si própria; devendo antes alcançar-se através de uma nova sofisticação da linguagem musical, capaz de operar um “efeito de singeleza muito distante de qualquer ingenuidade, obtendo-se assim uma simplicidade intelectualmente elástica”. Essa deveria ser “tarefa e ambição da Arte”, que, por sair do reduto e se despir do pathos e da solenidade, alcançaria um novo sentido e “trataria por tu a humanidade” (Mann, 1996: 370-373).

A relação entre a música e as outras esferas da vida social havia sido objeto de um ensaio densíssimo de Max Weber (1864-1920), um dos fundadores da sociologia, que combinava esse estatuto com o de profundo conhecedor de música. Em 1911 – portanto, na mesma conjuntura em que o herói ficcional de Mann (que teria nascido em 1885 e morreria em 1940, mas reduzido à loucura desde 1930) caminhava para o auge das suas capacidades de compositor – Weber havia escrito Os fundamentos sociológicos e racionais da música, que seriam publicados já postumamente, em 1921. Aí considerava o desenvolvimento da “música ocidental”, depois do Renascimento e por comparação quer com épocas anteriores, quer com o que ocorria nas civilizações árabe, persa, indiana ou oriental, como um “processo de racionalização”. 

Este processo queria dizer duas coisas. Uma era a autonomização da música face aos usos sociais em que era apenas um meio ao serviço de finalidades práticas (sobretudo de ordem mágica, mas também religiosa, cerimonial ou política), com a concomitante afirmação e institucionalização de uma ordem musical, como esfera estética. A outra era o desenvolvimento dos recursos próprios, o que, no Ocidente moderno, significou a criação de um sistema racional de notação, a emergência da polifonia não só como “polivocalidade” mas também como “polissonância”, ou o surgimento de novos instrumentos e o protagonismo dos seus construtores, afinadores e virtuosos (Weber, 1995: 53-150; cf. Waizbort, 1995). 

Tal desenvolvimento inseria-se, por sua vez, no movimento mais geral de racionalização que Weber via como característico e distintivo da modernidade ocidental – que se manifestava tanto na harmonia de acordes como na “ética protestante”, na ciência e tecnologia, na autoridade legal ou no “espírito do capitalismo”. De todos estes modos, o processo ocidental de racionalização quebrava a unidade do mundo, diferenciava-o em esferas ou ordens autónomas, descoincidentes e eventualmente contraditórias, provocando tensões dinâmicas, e fazia da racionalidade formal e instrumental o móbil fundamental da ação humana. O que induzia o “desencantamento”: o mundo objeto de apreensão racional segmentava-se, secularizava-se e, subordinado ao controlo dos homens e organizado em sistemas, perdia transcendência e unidade.

Outro sociólogo alemão, Georg Simmel (1858-1918), também ele contemporâneo do corpóreo Max Weber e do ficcionado Adrian Leverkühn, havia por sua vez situado, no âmago do que chamou a “experiência estética”, uma tensão entre contrários: entre as vidas vividas e as vidas imaginadas; entre as formas da simetria – que equilibravam, mas também fechavam – e as formas da assimetria – que abriam, mas desequilibravam; entre a cultura como acervo de linguagens e obras à disposição dos criadores e o esforço criativo singular, que se alimentava do acervo mas que, para realizar-se, o tinha também de desafiar. A experiência estética – na música como nas demais artes, do autor como do intérprete e da audiência – passava, pois, por esse jogo entre “contrastes inconciliáveis”; no seu conjunto, a cultura poderia ser descrita como “o caminho que vai da unidade fechada à unidade desdobrada, passando pelo desdobramento da multiplicidade” (Simmel, 1993: 129-138,182). Quer dizer: a história da música não poderia ser descrita apenas unidirecionalmente, mas através desta dialética entre uno e múltiplo, entre coletivo e singular, entre continuidade e rutura.


3. 

Se quiséssemos, pois, acompanhar Adrian Leverkühn na sua apologia febril do reencontro redentor entre arte e humanidade, tendo, porém, em conta reflexões de quem se havia já debruçado sobre a mesma relação, teríamos de usar de várias cautelas. 

Umas decorreriam da constatação de uma infungibilidade. Pelo menos tal como resulta do processo histórico ocidental (descrito weberianamente como de racionalização e desencantamento), a autonomia formal e normativa tornou-se a condição necessária da criação artística. Há sempre um ponto a partir do qual a aproximação entre música e vida não pode prosseguir, sob pena de a música deixar de o ser. O entrelaçamento entre arte e sociedade não poderia atingir um gau de fusão tal que significasse a morte da arte enquanto expressão humana autónoma. Aliás, no trecho de Doutor Fausto de que parti, é isso que recorda o narrador, o doutor em filosofia Serenus Zeitblom, amigo do malogrado compositor e seu biógrafo, para sustentar a sua própria discordância: a independência face à sociedade é o requisito básico do florescimento da arte (Mann, 1996: 3729).

Outras cautelas estariam associadas ao impulso criativo – até poderíamos dizer a pulsão criativa – matricial em qualquer arte. Na perspetiva simmeliana, incorpora sempre alguma rutura, algum rasgo, no duplo sentido de ousadia e corte; e, no limite, como no próprio Adrian, algum gesto fáustico, um pacto com as forças da desordem, uma compra provisória de liberdade e tempo inevitavelmente paga, no futuro, por altíssimo preço. Mesmo que desejável, ou até mesmo inevitável, o encontro entre arte e humanidade era sempre potencialmente tenso, conflitual e doloroso: seria também um confronto.

Outras cautelas, ainda, diriam respeito particularmente à música, como uma das artes. A de linguagem mais universal, visto que o código que utiliza é transversal à diversidade das línguas humanas e não precisa sequer de palavras para nos atingir no âmago das crenças e emoções; e, por isso, ao mesmo tempo a mais polissémica, a mais fugidia, a menos controlável em figuras de ordem e racionalidade – na afirmação de Adrian, jovem estudante, “a ambiguidade organizada como sistema” (Mann, 1996: 60). Outra personagem-chave de Mann – agora de A Montanha Mágica – o intelectual italiano Lodovico Settembrini, que interage longamente com o protagonista Hans Catorp a partir de uma conceção iluminista do mundo e da cultura, já opunha, em termos semelhantes, a música à literatura: se esta merece louvor, como a forma de expressão por excelência da arte desejável, a que desperta, aquela merece todas as reservas suscitadas por uma arte que “entorpece, anestesia e se ergue como barreira à atividade e ao seu progresso”, quando inebria e aliena (Mann, 2009: 130-135).


4. 

O resultado de todas estas cautelas poderia ser uma atitude radical. Como a que defendeu veementemente outro grande intelectual alemão, Theodor W. Adorno (1903-1969), a partir de uma conceção modernista e ascética da cultura, que não permitia nenhuma espécie de condescendência. Para ele, havia de facto uma ligação profunda entre arte e humanidade; mas era negativa. Cada obra de arte, por sê-lo, era uma dissidência face à ordem: e nessa dialética negativa é que haveria de identificar-se o seu valor. “A cultura é o protesto perene do particular contra o geral, na medida em que este mantém aberto o conflito com o particular” (Adorno, 2003b: 113). Qualquer pressuposto de singeleza e imediaticidade do acesso do público à obra de arte, qualquer confusão entre fruição artística e prazer ou deleite pessoal, qualquer qualificação positiva da massificação do consumo cultural deveriam ser denunciados, não só como ilusão, mas como manipulação: como o “fetichismo” na música e, em geral, na arte, que induz e prossegue a infantilização dos públicos (no caso da música, a “audição regressiva”) e, portanto, o seu subdesenvolvimento cultural (Adorno, 2003a). A arte não é como o desporto ou o cinema, não é da ordem do espetáculo ou da indústria de massas; e, portanto, não há reencontro possível entre arte e humanidade que não passe pela generalização tanto quanto possível do modo erudito de fruir a arte por via do conhecimento e da habituação, mesmo que este pudesse e devesse ser transformado (cf. DeNora, 2003: 1-34; Ribeiro, 2003).

Adorno polemiza com Walter Benjamin (1892-1940), o qual via na “era da reprodutibilidade técnica” da arte uma promessa de revolução nos circuitos de produção, distribuição e consumo cultural. A “ocorrência em massa” que essa era permite às obras facilita um processo de aproximação recíproca entre arte e humanidade, pondo em questão fundamentos habituais da distância da primeira, como a aura do criador e a tradição que enforma e protege escolas, correntes, procedimentos e gramáticas. Ela amplia as condições de acessibilidade da cultura e potencia as formas da sua imersão na vida social, designadamente no traçado e quotidiano urbano. Traz a arte para a cidade, no sentido literal e figurado, a cidade onde pulsa o ritmo de uma sociedade, onde habitam, trabalham, sofrem, sonham, socializam, deambulam as pessoas (Benjamin, 1992).

Por conseguinte, para Benjamin, esse reencontro entre música e humanidade sonhado por Adrian Leverkühn, que nos vem servindo de mote, tem, como pressuposto, um processo de dessacralização: a ultrapassagem da aura, como fonte superior de inspiração, do lado da criação, e uma receção menos separada do resto da prática social, um “modo tátil” de aceder e desfrutar das obras de arte (Benjamin, 1992: 108-110). E isto, a música, que não precisa de palavras, que pode ser ouvida na festa popular como na sala de um concerto, individualmente ou em grupo, em posição hirta ou dançando, escutando os intérpretes ou trauteando com eles, potencia melhor do que qualquer outra forma de arte. 


5.

É inesgotável o tema das relações entre arte e humanidade. Felizmente. E perante isso, podemos tomar uma de duas opções: ou forçamos a simplificação, enunciando-o em termos de oposições dicotómicas (obrigando-nos a optar, no caso, entre Weber e Simmel, entre Adorno e Benjamin); ou seguimos o caminho contrário, aproveitando em nosso benefício as reflexões complexas e díspares que o tema vem suscitando a intelectuais conhecedores quer da dinâmica social quer da forma musical.

Sou convictamente a favor da complexidade; e para isso reivindico o patrocínio de todos os sociólogos alemães que já citei: de Weber, porque ele faz a distinção entre, de um lado, o esforço abstrato de conceptualização, que elabora o que designa por tipos ideais – para assinalar a seleção e simplificação a que procedem – e, do outro lado, a análise em concreto de uma dada realidade empírica, necessariamente muldimensional e singular (cf. Silva, 1988: 61-76); de Adorno e Benjamin, porque ambos problematizam mais do que afirmam, empenhados em abrir discussões e enriquecê-las a partir da pluralidade das perspetivas possíveis, e não em concluí-las ou travá-las com ortodoxias e argumentos de autoridade; e, claro, de Simmel, esse teórico por excelência dos jogos de contrários e dos processos contraintuitivos que desafiam as unidades monísticas e destacam a multiplicidade constitutiva do real, para daí conduzirem a novas unidades feitas de uma relação inclusiva entre os elementos múltiplos e diversos.

Até porque, como mostrará, mais perto de nós, outro grande pensador germânico, Jürgen Habermas (nascido em 1929), é na consideração e no confronto entre diferentes argumentos que pode avançar a compreensão das coisas. Se o ponto de partida for a recusa de reduzir a razão humana a uma só das suas formas (hipervalorizando o cálculo em detrimento de outros modos de racionalidade) e for negar, portanto, foros de autoridade a qualquer verdade anterior ao nosso escrutínio analítico, então, a saída é apostar nesse “agir comunicacional” que tem por eixo o debate público entre argumentos igualmente relevantes, assim procurando construir caminhos de descoberta e entendimento (Habermas, 1981). Ou, para dizer o mesmo de maneira mais literária, podemos seguir outro enorme escritor de origem e língua alemã, G. W. Sebald (1944-2001), quando ele descreve o labor de reconstituição do protagonista-narrador de Vertigo: escrevia a partir de notas e outros papéis dispostos sobre uma mesa, “estabelecendo conexões entre eventos que distavam bastante uns dos outros, mas que [lhe] pareciam ser da mesma ordem” (Sebald, 2002: 94).


6.

Numa tal perspetiva, que às linhas contínuas de rutura prefere os tracejados que ligam o que, à primeira aproximação, parece afastado, que conecta e articula, que compõe a partir do diverso, todas as respostas são úteis para entrar a fundo nesse problema da arte que Thomas Mann fez o seu herói Adrian formular assim: como pode tratar por tu a humanidade?

É que a música já está , no meio da humanidade. Está no tempo e no espaço, nas várias culturas e civilizações, está na história, junto das pessoas, dos grupos, das instituições, dos acontecimentos. É um facto social, enquanto ação e produto humano, por mais específica e formal que seja; é um ingrediente social, uma parte do comportamento e da relação que temos connosco próprios e uns com outros; é um recurso social, um meio que as pessoas e as instituições usam para alcançarem certos efeitos; é um gerador social, um produtor de realidades, sejam elas as emoções, as crenças, as lealdades, as desconstruções que fazem mexer a história. Em nenhuma destas dimensões podemos ignorar o contexto, em nenhuma delas podemos reduzir a música a uma mera consequência do contexto (Silva, 2021).

Qualquer que seja a linguagem, a gramática, o género, a escola, a época, a música está aqui, entre nós, no nosso passado, no presente e nas possibilidades de futuro. Apetece mesmo dizer: o encontro da música com a humanidade, caro Adrian Leverkhün, está sempre a verificar-se. Na sala de concertos que ouve uma sinfonia de Beethoven ou uma suite de Bach, no estádio de futebol que esgotou para que uma imensa multidão possa dançar com a banda de rock na moda, no largo de uma festa de aldeia, na igreja que celebra com canto, nas ruas em que o hino nacional ou a banda militar conquistam as massas, no estúdio em que se experimentam todos os limites formais, nos conservatórios em que se formam os próximos virtuosos, nos gira-discos ou telemóveis em que se escutam as sequências que escolhemos ou escolheram por nós, na cave do clube de jazz, no salão do baile dominical dos deserdados da sorte; ou no campo de concentração em que se ergueu e resistiu um quarteto de cordas clandestino, ou na praça em que a Orquestra Sinfónica de Kiev desafiou os bombardeamentos russos, ou nos lugares de exílio das instrumentistas da orquestra feminina afegã fugidas à barbárie talibã. 

Cada uma e cada um de nós – cada tempo, cada corrente, cada grupo, cada atmosfera intelectual, cada sala como esta, cada pessoa – tem de tornar real, por sua conta e risco, esse encontro entre arte e humanidade, entre música e humanidade, entre o mundo da música e o mundo da vida. De um modo mais ascético ou mais festivo, mais intelectual ou mais tátil, tendo ou não presente o longo processo de racionalização da música, admirando ou nem sequer percebendo a tensão entre o impulso singular do criador e o património da escola, género ou disciplina. De todas as maneiras – e às identificadas pelos pensadores alemães que aqui chamei outras se poderiam acrescentar – o que importa é que não só sintamos como também falemos e conversemos sobre a música e, como diria Weber, sobre a “significação cultural” da música. Que sentido ou sentidos lhe podemos atribuir? Que podemos fazer com ela? 

Não creio que haja alternativa a “agir comunicacionalmente”: trocando argumentos, sem pré-juízos, sem posturas de combate, sem trincheiras estéticas, sem dicotomias cujos termos se anulem reciprocamente, sem esgrimir devoções fanáticas ou tomadas escolares de partido. Não creio que haja alternativa a fazê-lo com ecletismo, plasticidade, abertura, consciência de que as coisas mudam e nós com elas; a fazê-lo acarinhando o plural e o diverso, e a larga unidade simmeliana que se pode tecer a partir deles – a unidade da humanidade capaz de acolher e encarecer várias artes, várias linguagens, várias perspetivas, vários públicos.

E talvez haja aí, mesmo neste mundo que a racionalização secularizou, a pequena semente de um novo encantamento: cruzamentos, interseções, quiçá fusões, que possam ampliar horizontes. Ou seja: encontros fecundos entre coisas diferentes e contrapostas, sejam elas as formas de inscrição da criação, ou os circuitos da sua reprodução e distribuição, ou os modos de receção, ou as articulações com as demais estruturas sociais, da economia à política; e alargamento dos caminhos que percorremos e dos destinos a que nos levam, de maneira que possamos todos sentir-nos incluídos, na nossa diversidade, até na nossa individualidade (e na nossa hesitação), e assim membros de uma, ao menos possível, imaginada, comunidade.


7.

Com ironia certeira, Walter Benjamim (2021: 50) recomendava “atenção aos degraus” quando se tratasse de passar a escrito sentimentos e reflexões: é que “o trabalho numa prosa de boa qualidade tem três níveis: um musical, o da composição, um arquitetónico, o da construção, e, finalmente, um têxtil, o da tecelagem”.

Fiquei-me aqui pela composição: porém frustre, desgarrada, incipiente. Como o narrador de Sebald, sentei-me à mesa rodeado de fragmentos – os ecos na memória e nas minhas fichas de trabalho de pensadores alemães novecentistas sobre a relação entre música e sociedade; fi-los dialogar entre si e com autores e personagens da literatura germânica; e creio ter assim reiterado o que julgo ser consciência generalizada: se não se pode entender a música clássica sem a Alemanha, tão pouco se pode entender, sem ela, o pensamento sobre a música.

Confio que outros mais experimentados em terrenos para mim estranhos possam agora, quais arquitetos, dar elegância e solidez a esta simples ideia e, quais tecelões, encontrar-lhe forma, substância e utilidade. No limite do meu escasso crédito, o tributo está pago. Pelo que devo à Alemanha, aqui como em tantos outros domínios. 

À minha Alemanha: a dos intelectuais que souberam pensá-la para além dela. 



Referências:

Adorno, Theodor W. (2003a): "Sobre o carácter fetichista na música e a regressão da audição" [1938], in Sobre a indústria da cultura, trad, Coimbra, Angelus Novus: 21-56.

Adorno, Theodor W. (2003b): "Cultura e administração" [1960], in Sobre a indústria da cultura, trad, Coimbra, Angelus Novus: 107-132.  

Benjamin, Walter (1992): "A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica" [1936-39], in Sobre arte, técnica, linguagem e política, trad., Lisboa: Relógio d'Água: 71-110.

Benjamin, Walter (2021): "Rua de sentido único" [1928], in Rua de Sentido Único. Crónica berlinense. Infância berlinense por volta de 1900, trad., Lisboa: Relógio d'Água: 29-146.

DeNora, Tia (2003): After Adorno: rethinking music sociology, Cambridge: Cambridge University Press.

Habermas, Jürgen (1981): Théorie de l'agir communicationnel [1981], trad., Paris: Fayard.   

Mann, Thomas (1996): Doutor Fausto [1949], trad., 2. ª ed., Lisboa/Porto: Dom Quixote/O Oiro do Dia.

Mann, Thomas (2009): A montanha mágica [1924], trad., Lisboa: Dom Quixote.

Ribeiro, António Sousa (2003), "Prefácio" a Theodor W. Adorno, Sobre a indústria da cultura, Coimbra, Angelus Novus: 7-18.

Sebald, W. G. (2002): Vertigo [1990], trad., Londres: Vintage Books.

Silva, Augusto Santos (1988): Entre a razão e o sentido: Durkheim, Weber e a teoria das ciências sociais, Porto: Afrontamento.

Silva, Augusto Santos (2021): "Art beyond context: a sociological inquiry into the singularity of cultural creativity", Sociologia, problemas e práticas, 95: 9-23.

Simmel, Georg (1993): La tragédie de la culture et autres essais, trad., 2.ª ed., Paris: Rivages.

Waizbort, Leopoldo (1995): "Introdução" a Max Weber, Os fundamentos racionais e sociológicos da música, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: 23-52.

Weber, Max (1995): Os fundamentos racionais e sociológicos da música [1921], trad., São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. 


 

[1] Desenvolvimento da intervenção no Colóquio “Música, uma história da Alemanha”, promovido pela Casa da Música, na abertura do Ano da Alemanha, em 13 de janeiro de 2023.